
PSILÍTERA
OFICINA DE PSICANÁLISE E LITERATURA
Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de estados patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e portanto, também da psicologia científica (Freud, 1907 [1906], Gradiva).
Shakespeare com Freud e Lacan
Betty Bernardo Fuks
Maria Anita Carneiro Ribeiro
Próximo ao final da aventura que o levou a inventar a psicanálise, Freud, referindo-se a alguns versos de Goethe (Freud, 1939) , reconhece que sua disciplina sempre esteve submetida à autoridade do escritor e do poeta. Selava, desta forma, o que havia apreendido no início de sua prática: psicanálise e criação artística dizem respeito à Outra cena. Das artes, privilegia a que considerou melhor franquear acesso ao inconsciente: a literatura. Escolha registrada na carta a Fliess, de 15/10/1897, cujo tema gira em torno dos fundamentos do complexo de Édipo e de suas primeiras elaborações da obra de Willian Shakespeare (Freud, 1950, p. 305). Sobre este, se é verdade que a originalidade cognitiva e representativa foi o seu maior poder, instrumento com o qual adiantou todo o progresso da literatura que estava por vir, como insiste Harold Bloom (1995, p. 52); também é certo que a força poética do bardo inglês, antecipou, de algum modo, o avanço que estava por vir com a ciência inaugurada em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900). Durante a escrita desta obra, movido pela busca de sentido que o sofrimento impõe, Freud decide romper com determinados saberes que conferiam, então, ao mundo onírico e a loucura o estatuto de mero erro de sentido e se apropria do discurso Polônio sobre a loucura de Hamlet – "Há um método em sua loucura" (p. 83) – para destacar a dimensão de verdade destes fenômenos inquietantes.
Acerca deste giro fantástico da psicanálise em direção ao campo da literatura, vale uma reflexão. A obra de arte foi, de fato, uma das bússolas mais precisas a qual Freud recorreu, durante sua travessia pelos subterrâneos da relação do homem com a fantasia e a loucura, na teorização da experiência e exercício de seu compromisso ético em pensar o mal-estar na cultura[1]. Mesmo tendo sido nutrido pelo Iluminismo científico do século XIX, quando precisou vencer as resistências da ciência positivista à teoria do inconsciente e melhor fundamentar o edifício teórico que construiu como homem de ciência, se associou imediatamente aos poetas e escritores, aqueles que "conhecem entre o céu e a terra, muitas coisas que nossa sabedoria escolar ainda não pode imaginar" (Freud, 1906, p. 8). Lembremos que da tragédia de Sófocles, o fundador da psicanálise retirou o que hoje se conhece como o lugar nuclear do mito edipiano na estrutura psíquica do sujeito. A análise freudiana sobre a estruturação do sujeito encontra em Édipo Rei uma figura conceitual impar. O poeta de Colono, talvez tenha sido o maior de seus aliados: cantava em prosa e verso, muitos séculos antes da invenção do inconsciente, os mais profundos desejos que habitam a alma humana – o incesto e o parricídio – matéria prima da investigação psicanalítica.
Seja como for que se interprete a presença da experiência literária na obra de Freud, o que não se pode negar é que as incursões feitas por ele neste universo, além de confirmar o que vinha descobrindo em sua "auto-análise" e na clínica, moldou sua forma de colher metáforas e exemplos conclusivos às teorias do aparelho psíquico. Além disso, ao estreitar as relações do fazer da psicanálise com o fazer estético e a criação artística, a partir do texto "O Estranho", terminou evidenciando que estes fazeres constituem uma dimensão interna essencial à disciplina que inventou. Nesse sentido, nada poderia ser mais ilustrativo do que a escrita criada por Freud, a escrita do inconsciente. Escrita que o obrigou a escrever de forma extremamente enigmática para um cientista do início do século XX. Já nos primórdios da psicanálise, nos "Estudos sobre histeria", ele próprio reconheceu ter ficado bastante assustado ao perceber que as histórias de seus pacientes eram lidas como "novelas", desprovidas, por assim dizer, de qualquer caráter de cientificidade (Freud, 1895, p. 174). Transpondo todos os limites das observações sintomáticas da histérica, Freud adotou como sistema de apreensão do sofrimento psíquico, uma série de eventos da história do sujeito que imediatamente eram integrados, pelo instrumento clínico da transferência, ao próprio processo de cura. Com isso, afastava-se da neurologia e da psiquiatria – "os diagnósticos localizados e as reações elétricas até então usadas para o entendimento de uma histeria, não levavam a parte alguma" –, e se aproximava dos escritores – "uma descrição detalhada de processos mentais, como se costuma encontrar nas obras de autores literários, facilita a obter uma melhor e maior compreensão do curso desta afecção" (ibidem). Entre a ciência positivista e a narrativa literária, Freud escolhe a última fonte.
É este saber, saber avant la lettre psicanalítico, que atraí à atenção de Freud. A análise sistemática de uma obra literária, tal qual ele pode empreender, pela primeira vez, no romance de Wilhelm Jensen, Gradiva, uma fantasia pompeiana, demonstra, em primeira instância, o forte sentimento de estranheza que o invadiu, ao se deparar com a construção e desenrolar de uma obra, cujo autor, desconhecendo tudo sobre psicanálise, confirmava o que tão arduamente ele próprio havia conceituado e teorizado. Assim, apesar de considerar o texto de Jensen como um verdadeiro "estudo psiquiátrico" (1907, p. 36), Freud se abstém de reduzi-lo a um mero protocolo da "enfermidade" de Norbert, o protagonista apaixonado por uma imagem de mármore – Gradiva, a cativante figura feminina de Pompéia. Sabe colher deste enredo elementos bastante significativos, com as quais cria um caso clínico "da história de uma cura que parece concebida para ressaltar determinadas teorias fundamentais da ciência médica da alma" (1907, p .37). Sua pena não se precipita. Segue o curso da escrita que revela uma forma de cura próxima à prática analítica.
A partir daí, acostumado a escrever a clínica como o desenrolar de uma novela, Freud constrói uma ficção teórica. Num primeiro plano, encontramos a apresentação de analogias entre a novela jenseniana e o tratamento psicanalítico e entre, o sepultamento de Pompéia e o recalque psíquico. Mas para além desse exercício, aparentemente restrito ao campo da psicanálise aplicada, Freud, do conhecimento original que o autor detém sobre a função dos sonhos e da fantasia na vida psíquica, extrai as letras com as quais define o estatuto metapsicológico do delírio. É preciso lembrar que Freud qualifica como delírio as fantasias de Norbert, quando essa palavra nunca é empregada por Jensen; o que nos dá a medida do quanto a leitura à letra, estendendo-se para os brancos e as margens do texto, permite construir o saber em jogo no texto, que o artista não sabe. Enfim, a Gradiva de Freud testemunha que o sentimento de estranheza provocado por um texto literário determina que o analista pense, reflita e convoque a palavra a dar voz ao desejo de saber. No lugar de se limitar a encontrar situações psicológicas no romance ou aplicar conceitos psicanalíticos a priori estabelecidos, o analista se serve da obra para tornar inteligível os elementos mais significativos da experiência psicanalítica.
Infelizmente, na história da psicanálise, a literatura nem sempre é tratada como fiadora à renovação e criação de nossa disciplina. Em alguns momentos ela foi e ainda é deitada no divã do psicanalista. Neste caso, nas sábias palavras de Noemi Kon, "a literatura verá sua trama cadaverizada e dissecada para as confirmações e premissas que, num momento original, a psicanálise sustentou" (Kon, 2001, p. 92). Não são desconhecidos alguns dos enfadonhos estudos "psicanalíticos" em que o autor consegue reduzir uma determinada obra de arte à patologia ou à psicobiografia do autor. Nesta vertente, trata-se de ler, na obra, as marcas inconscientemente deixadas pelo autor o que requer do crítico usar a psicanálise como uma máquina de interpretação, colocando em risco a leitura do inconsciente. Uma precipitação que até Freud incorreu, ao esmiuçar a personalidade e a vida de Dostoievski e a de Leonardo Da Vinci, expondo a própria psicanálise a perder o elo original com a obra de arte de fortalecimento às próprias conclusões relativas à alma humana.
Entretanto, ele próprio chega a atinar para o perigo de se interpretar a obra de arte como uma mera "solução compromisso" do autor, sujeita ao trabalho que se limita à tradução através de uma grade exegética. Ao comentar a obra de Dostoievski, Freud confessa: "diante do problema do artista criador, a análise, infelizmente, tem de depor suas armas" (Freud, 1927, p. 216). É importante, então, sustentar que qualquer psicografia que pretenda completar a obra com o que lhe faltaria, a vida do autor, e preencher os enigmas dos textos com elementos biográficos, não elucida o mistério do dom que faz o artista.
Não há, portanto, uma posição unitária em relação à obra de arte e seu autor por parte de Freud, mas uma ambivalência entre o imperialismo das interpretações psicanalíticas que podem conduzir às enfadonhas psicobiografias e elaborações psicopatográficas do autor e o seu total retraimento para fortalecer, apenas, aquilo em que a produção literária antecipa uma melhor compreensão da alma humana e permite verificar, num jogo de espelhos, a própria face da construção psicanalítica. (Kon, 2001, p. 95). Em Freud, esta ambivalência só ficará resolvida, com a construção de Moisés e o monoteísmo, livro que instala o jogo entre o texto bíblico e a construção freudiana, entre o objeto explicado e o discurso analítico. Trata-se de uma ficção teórica, algo que transgride a regra de cientificidade; que se assemelha – conforme a uma obra de imaginação. No campo da psicanálise Freud ratifica a descoberta da associação livre em intima conexão com a leitura de uma obra de arte: a leitura é um outro, e não outra face do idêntico. Nesse outro é que acontece o sentido do texto. Freud desconstrói o texto bíblico, escrito por autor desconhecido, convoca palavras, reinscreve traços, corta as letras, dá corpo aos brancos de um pergaminho ancestral, resignifica genialmente o Livro dos livros, para produzir um saber que concerne à psicanálise. Move-se apenas no campo do inapreensível, do outro. "Meu romance", diz Freud ao apresentar Moisés a Arnold Zweig. Uma narrativa simultaneamente científica e literária, rigorosa e imaginosa.
Tendo como pano de fundo tanto o movimento inaugural de Freud em se aliar aos poetas e artistas no entendimento da alma humana, uma aliança amplamente reconhecida e endossada por Lacan em "Homenagem a Marguerite Duras pelo Arrebatamento de Lol V. Stein" (Lacan, 1989, p. 125), como o parentesco da psicanálise com o fazer do artista criador, voltemos a focalizar a obra de Willian Shakespeare, perfeita ilustração de que, no que diz respeito à verdade em causa no inconsciente, o artista precede o psicanalista, e é com o primeiro que o segundo pode aprender.
Cabe começar observando que apesar de Freud ter demonstrado, encontrar na letra do bardo inglês e de outros escritores importantes o fio do que ele próprio perseguia, muitos de seus críticos e biógrafos insistem em reduzir o método freudiano de leitura da obra de arte, a supostos dramas psíquicos que eles costumam atribuir ao próprio pai da psicanálise. Ernest Jones, por exemplo, em A vida e obra de Sigmund Freud (1989), especula o fato de que o inventor do método analítico teria, ainda que parcialmente, se identificado ao pintor Leonardo da Vinci, à figura bíblica de Moisés e ao poeta W. Shakespeare. Os estudos do inventor da psicanálise sobre estes três grandes homens seriam, ainda segundo o conhecido biógrafo de Freud, apenas variantes disfarçadas do tema que em psicanálise conhecemos sob o nome de "romance familiar" (p. 417). Jones observa que Leonardo da Vinci foi precocemente afastado de sua mãe camponesa e criado por sua madrasta fidalga. Ambas as mulheres o amaram apaixonadamente e que Freud atribui a este evento muito da complexidade da vida sexual de Leonardo, bem como de muitas de suas produções artísticas. Sobre Moisés e Shakespeare, atribui à problemática identificatória do próprio Freud, o fato de acastelar a hipótese de que Moisés não era judeu e sim um egípcio, assim como também defendia, apaixonadamente, a tese de que o verdadeiro autor de Hamlet, o príncipe dilacerado pelo assassinato do pai, não teria sido o ator William Shakespeare (ibidem, p. 417-18).
É digno de nota que mesmo tendo escrito um artigo sobre a tragédia do príncipe da Dinamarca[2], Jones ignorou o fato de que tanto as investigações sobre a estrangeireidade de Moisés como as dúvidas a cerca da identidade de Shakespeare, no início dos novecentos, eram freqüentes em todas as áreas. Havia todo um esforço dos historiadores da religião para desvendar a origem desta figura maior do judaísmo e da crítica literária em descobrir a identidade do bardo inglês; o nome completo que aparecia disfarçado nas iniciais W. H., legíveis na dedicatória dos Sonetos. Isto nos dá a medida do quanto o biógrafo inglês de Freud, Jones, não resistindo à tentação de aplicar ao próprio Freud uma diligência de inspiração psicanalítica, deixou de levar em conta a história cultural da época e terminou por se desviar da prática psicanalítica de leitura à letra.
Toda e qualquer pretensa atribuição de uma razão identificatória de Freud a personagens de sua história pessoal ou da História, é de uma ingenuidade desconcertante. Em geral trata-se de uma interpretação "psicologizante", por parte dos psicanalistas, biógrafo de Freud e historiadores. Deve-se de ter muita cautela para não se empobrecer, com uma "interpretação psicanalítica", sumária e selvagem, tanto a arte quanto a vida e a obra de Freud. Trata-se de um vicio reducionista que pouco ou em nada contribui à transmissão dos conceitos psicanalíticos. Sem dúvidas a obra de Shakespeare ocupou um lugar especial no pensamento de Freud e diríamos que a polemica que criou em torno de encontrar em Shakespeare o "estrangeiro em terra estrangeira" que era como ele localizava Moisés, se situa para além de qualquer eventual identificação imaginária. Nos três personagens citados, é menos de identificação, como sugere Jones, do que se tratava para Freud, mas da atopia do sujeito do inconsciente, encarnada nestes grandes homens.
Hamlet, a peça mais célebre de Shakespeare, como se sabe, não é fruto de uma idéia original. Trata-se de uma tragédia inspirada num mito popular de origem escandinava e que já havia sido publicado. O mesmo se deu com Romeu e Julieta. A grandeza do bardo inglês não reside na originalidade de sua inspiração. Não é tampouco desconhecido o fato de que algumas das peças históricas deste poeta que ultrapassou até mesmo as três influencias significativas que sofreu durante sua vida e obra – Marlowe, Chaucer e a Bíblia inglesa[3], - foram escritas para louvar a dinastia dos Tudor, que havia subido ao trono após a guerra das duas rosas. Quando a rainha Elizabeth Tudor morreu, sendo sucedida pelo rei Jaime I da Escócia, Shakespeare escreveu a tragédia Macbeth, em louvor ao rei Banquo, antepassado do rei Jaime I. Eram, portanto, peças de encomenda (Shakespeare, 1995). No entanto o gênio do poeta se sobrepõe a tudo isto e demonstra que, por sua obra, o artista faz a economia do recalque e revela algo da verdade. A escrita de Shakespeare escoa por este desvio pulsional que Freud chamou de sublimação, o recurso que permite a suspensão do recalque e o vislumbrar do recalcado A obra de arte realiza, de fato, um invólucro da castração.
A excepcional capacidade do poeta em representar o sujeito e de criar representações literárias, opera de modo a "induzir a realidade a revelar aspectos de si própria que nós, de outra forma, não poderíamos discernir" (Bloom, 1993, p. 79). Freud (1900 [1899]) se deixando guiar pela pena de Shakespeare termina tomando Hamlet em seqüência com o Édipo de Sófocles. É como se a tragédia do poeta inglês completasse a do poeta grego na elucidação do complexo central da neurose.
Com efeito, embora o inconsciente ignore o tempo passado, presente ou futuro não significa que a psicanálise possa estar fora do tempo, ou de determinada época. Se por um lado complexo central da neurose diz respeito aos sujeitos, individualmente, em suas particularidades, por outro lado, este particular por estar ligado à linguagem faz parte de determinado período da História. E certamente, em se tratando da conexão entre arte e psicanálise Freud, estava atento a subjetividade do autor e da história pública de sua época.
Jacques Lacan (1989) irá traduzir esta tese freudiana da dessemelhança da vida anímica em diversos tempos históricos, utilizando-se do Hamlet de Shakespeare para estabelecer o contraste entre o herói trágico da Antiguidade ( i, de Sófocles) e o herói moderno. O herói da tragédia antiga não sabe o que sabe de seu destino e é um joguete nas mãos dos deuses. O herói moderno sabe dos crimes do pai e da luxúria da mãe, e é atormentado por sua divisão subjetiva. Quer vingar o pai, mas está identificado ao seu assassino.
Na tragédia de Hamlet, o herói se concentra na hesitação, na procrastinação em cumprir a vingança desejada pelo pai morto. Um pai que, em nenhuma passagem da peça, é lembrado como o rei que ama o filho, mas apenas seu amor por Gertrude. A peça se desenrola sobre as hesitações do príncipe de vingar a morte de quem considerava um pai e rei ideal. Em decorrência deste saber que o paralisa – o assassinato do seu pai - muitos autores e até mesmo o próprio Freud[4] consideram a figura de Hamlet como exemplo conclusivo ou protótipo da histeria masculina, com sua impotência edipiana. Outros, a partir da dúvida do príncipe afligido pela lamentação, ciúme assassino e ódio incessante, o tomam como paradigma pela celebre questão da dúvida obsessiva: ser ou não ser To be or not to be – that is the question (Hamlet, Act III). Ou seja, obsessivo pois sofre dos pensamentos e detém seu ato pela procrastinação, e, histérico porque identificado ao desejo do Outro. No limite da conexão entre psicanálise e literatura a experiência da escrita reatualiza a primeira: segundo Lacan (1989):
Hamlet é ao mesmo tempo obsessivo e histérico porque não é um sujeito do inconsciente: é o personagem de um artista que através dele fala da verdade do sujeito do inconsciente.
Em Dostoievski e o parricídio (1927), Freud acrescenta ao Édipo de Sófocles e ao Hamlet de Shakespeare, Os irmãos Karamazov de Dostoievski. Neste artigo, ele esclarece que nestas três obras primas, se articulam as questões sobre o assassinato e sobre o feminino, enquanto enigma sobre o desejo e enquanto encarna o próprio objeto causa de desejo. O assassinato do pai leva, nos três textos, à construção do pai como pivô da estrutura. Em Édipo Rei o pai assassinado é Laio, cujo gozo excessivo e transgressor atraiu sobre as gerações dos Labdacidas a maldição dos deuses. Em Hamlet, o pai assassinado confessa, quando surge sob a forma de fantasma, que morreu na flor de seus pecados. Novamente aqui é o pai e seu gozo que estão em questão. Também na figura obscena e feroz do pai Karamazov, é o gozo do pai que é posto em evidência em seu assassinato. Os filhos, como os irmãos da horda primeva, todos têm motivo para desejar sua morte. Entretanto é necessário destacar o fato de que em cada uma destas obras o assassinato do pai gozador delineia uma conjuntura particular que diz do sujeito do inconsciente. Deixemos de lado os irmãos Karamazov e vamos ver, com Lacan, o que o Hamlet de Shakespeare vem acrescentar ao Édipo Rei de Sófocles.[5]
Na "Observação sobre o relatório de Daniel Lagache" (1960), o comentário de Lacan (1960 [1998] é mais poético e se refere à função do bobo da corte ou do idiota, na obra de Shakespeare em geral. Ao comentar um chiste de Alfred Jarry com a palavra merde, invoca nosso bardo inglês:
Podemos nos perguntar se no Hamlet o papel do fool, que quer dizer bobo, porém quer dizer louco também, não é o do próprio príncipe da Dinamarca, que se faz de louco enquanto ganha tempo para executar sua vingança sempre protelada.
Lacan dedica ao Hamlet de Shakespeare a maior parte de seu sexto seminário, O desejo e sua interpretação (1958-1959). Este seminário é contemporâneo ao escrito "A significação do falo" e marca um momento bem preciso de seu ensino. Em 1953, com o "Discurso de Roma" contemporâneo do Seminário I, o analista francês inaugura o que considera o seu ensino propriamente dito, ou seja, o retorno a Freud. Nos cinco primeiros seminários estabelece o que seria o campo Freudiano: o campo da fala e da linguagem, regido pelas leis do inconsciente, metáfora e metonímia, leis da linguagem. A nosso ver, o sexto seminário abre um novo momento no ensino de Lacan: o momento em que ele começa a construir o que considera sua grande contribuição à psicanálise – o objeto a.
No Seminário VI, Lacan aborda o objeto causa de desejo pela via do falo, conceituando-o neste lugar ambíguo de significante da falta no Outro e, ao mesmo tempo, objeto do desejo. Nos dois seminários seguintes, ele vai buscar novos elementos para a construção lógica do objeto da psicanálise. No Seminário VII - A ética da psicanálise, recorre ao Das Ding – a coisa freudiana, relendo o "Projeto de 1895" e no Seminário VIII – A transferência, vai buscar no Banquete, de Platão, o ágalma, elevando ambos – Das Ding e ágalma – à categoria de avatares do objeto a.
Nos quatro seminários seguintes A identificação, A Angústia, os Quatro conceitos fundamentais e os Problemas cruciais para a psicanálise, o mestre de Paris vai trabalhar a extração do objeto a na constituição do sujeito. Esta nova série vai culminar no Seminário XIII – O objeto da psicanálise, onde este será abordado justamente através de outra obra de arte – o quadro As meninas, de Velásquez.
A construção lógica do objeto a é condição necessária para a elaboração do campo de gozo, campo do que está além da palavra, embora obedecendo às leis da linguagem. Abordada por este viés, a construção do objeto a se inicia e culmina no ensino de Lacan pela análise da obra de arte: do Hamlet de Shakespeare às Meninas de Velásquez.
Em sua análise Lacan, nomeia de saída em que a peça de Shakespeare acrescenta ao Édipo de Sófocles na apreensão da verdade sobre o sujeito do inconsciente: Hamlet é uma tragédia sobre o desejo. O desejo inconsciente é aqui revelado na sua essência como transgressor, incestuoso e mortífero. É também, como já dissemos, uma peça sobre o enigma do feminino enquanto causa de desejo. Como primeira figura do Outro na vida de cada um de nós, a mãe é o objeto de amor e desejo. É isto que Freud enfatiza com a universalidade do complexo de Édipo. Porém, para alem da mãe, há uma mulher com o seu desejo enigmático, que não está todo referido ao falo e à linguagem. É esta dimensão misteriosa do feminino que causa a inquietação do desejo.
Em Hamlet, a questão da mulher, presente em toda a obra de Shakespeare, se desdobra nas figuras de Gertrude e Ofélia. Gertrude, a mãe, é a figura obscena do gozo. Ofélia, o falo, encarna o objeto do desejo de Hamlet, mas só pode operar enquanto tal, ou seja, desencadeando a ação até então procrastinada, depois de morta. É no túmulo aberto de Ofélia que Hamlet recupera o desejo na relação especular com seu duplo, Laertes, o irmão de Ofélia.
Lacan chama a atenção para o fato de que durante toda a peça só se fala de luto, o que se mostra bastante lógico, já que é uma tragédia sobre o desejo. O luto em Hamlet é o que faz escândalo do casamento da mãe com o cunhado, Cláudio, alguns meses depois da morte do pai; um casamento demasiadamente precoce que terminou abreviando os rituais necessários à elaboração do luto. A tragédia escancara o desconhecimento do homem moderno para sua economia psíquica do valor do ritual no luto. Tendo em mente esta desordem, Lacan (1958-1959) vai nos dizer sobre a relação do sujeito ao desejo, a angústia, ao luto, ao falo e ao objeto a:
O objeto do desejo enquanto não é o falo provoca angústia porque se remete ao desconhecido, ao que está fora da linguagem. Na medida em que este objeto está para sempre perdido a angústia enlaça o luto ao desejo. Neste momento, Lacan estabelece a diferença entre o objeto do desejo – o falo – que é apenas um semblante, entre o imaginário e o simbólico, e o objeto causa de desejo – objeto a – que é da ordem do real. Conclui então: "O sujeito é, se o posso dizer, um objeto negativo" (p. 113).
Hamlet de Shakespeare ilustra com perfeição o que Lacan designou como o espaço da tragédia, este umbral entre-duas-mortes, espaço em que o horror é velado pela beleza imortal das palavras do poeta. Lacan (1988) diz do herói trágico:
É neste espaço que o horror da morte é velado pelo efeito de beleza. "O efeito de beleza é o efeito de cegamento" (p. 340). Na peça Vestido de noiva de Nelson Rodrigues (1981), o horror do entre-duas-mortas é velado pela beleza do texto e pela brancura da veste nupcial. Alaíde, a heroína, entre-duas-mortas. Logo no início da peça, o diretor do jornal A Noite pergunta ao repórter carioca: "Morreu?", e tem como resposta: "Ainda não. Mas vai" (p. 19). Por meio de um personagem secundário, a morte de Alaíde é anunciada. Ainda não. Mas vai.
Em Hamlet, logo no 1º ato, após a aparição do fantasma, que funciona como um prólogo, a primeira fala do rei Claudius, diz:
No filme do laureado diretor e roteirista britânico Kenneth Branagh (1996), após o prólogo com os guardas, a câmara avança numa tomada frenética que pega o salão do banquete de núpcias de Gertrude e Claudius de cima, com a voz do rei assassino anunciando em off a morte de Hamlet. Ainda não. Mas vai.
De que Hamlet se trata? Logo em seguida compreendemos que falavam do pai de Hamlet, o Rei, que tinha o mesmo nome do filho, porém o gênio do poeta já introduz, por esta ambigüidade, a morte anunciada de Hamlet. A peça tem assim a mesma estrutura do sonho de um paciente de Freud que Lacan analisa no início do Seminário VI: o filho, que havia perdido seu pai após uma longa doença, sonha que este conversa com ele, o que lhe produz forte angústia pois "ele não sabia que ele estava morto". E, Freud acrescenta "segundo seu desejo". Quem não sabia que estava morto? Lacan diz que a morte do pai aponta para o sujeito a sua própria mortalidade, a grande castração. Quem não sabia que estava morto? Nosso caro irmão Hamlet?
Notas:
[1] Sobre as marcas da literatura na teoria freudiana da cultura, ver o estudo feito por Sérgio Paulo Rouanet (2003) das obras literária que Freud recomendou ao livreiro vienense Hugo Heller, em 1906. Rouanet escancara a paridade de vozes paridade entre as vozes do escritor holandês Mutalti, do inglês Kipling, do francês Emile Zola, e as idéias freudianas desenvolvidas, principalmente, em "Moral Sexual Civilizada e nervosismo moderno"(1908) e no "Mal estar na Civilização" (1930).
[2] "The Oedipe complex: An ecplanation of Hamlet mystery, a study on motive. (Journal of American Psychology – 1910)
[3] Para Harold Bloom, Shakeaspeare teria engolido Marlowe, "como um peixinho por uma baleia"; ultrapassado Chaucer na capacidade deste escritor representar o humano; e superado o Javista suposto autor do Livro dos Jubileus, ao perceber que a crença "não passa da fraca desleitura da literatura, assim como a poesia depende de uma desleitura, forte ou criativa, do poder anterior da poesia" ( 1993, p. 67-68)
[4] Cf. Carta a Fliess de 15/10/1897, supra citada.
[5] Lacan se refere ao Hamlet de Shakespeare em alguns momentos nos Escritos. Na "Instância da Letra" (1957). E uma nota ao pé de página, compara o par Rosencrantz e Guildenstern, os amigos traidores, contratados pelo rei Claudius para entregar Hamlet à morte e com quem Hamlet reverte o jogo e os entrega para morrer, ele compara esta dupla à própria IPA (Lacan [1957], 1998, p. 509, nota 17).
Referências bibliográficas:
BLOOM, Harold. O Cânone Occidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1995.
_______ Abaixo as Verdades Sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até os nossos dias. São Paulo, Cia. das Letras, 1993.
FREUD, Sigmund. Fragmentos de la correspondencia con Fliess (1892-99). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v. I.
_______ Estúdios sobre la histeria (Breuer y Freud) (1893-95). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v.2.
_______ La interpretación de los sueños (1900 [1899]). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v. 4.
_______ El delirio y los sueños en la "Gradita" de W. Jensen (1907 [1906]). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v. 9.
_______ Dostoiewski y el parrícido (1928 [1927]). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v. 21.
_______ Moisés y la religión monoteísta (1939 [1934-38]). Obras completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1976, v 23.
JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1989, v. 3.
KON M. N. De Poe a Freud – O Gato Preto. In Bartucci, G. Psicanálise e Literatura. Rio de Janeiro, Imago, 2001.
LACAN, Jaques. A instância da letra no inconsciente (1957). In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_______ Observação sobre o relatório de Daniel Lagache (1960). In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_______ O seminário, livro VII, A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
_______ Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa, Assírio Alvim, 1989.
RODRIGUES, Nelson. Vestido de Noiva (1941). Teatro completo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981.
ROUANET, Sérgio P. Os dez amigos de Freud. São Paulo, Cia. das Letras, 2003.
SHAKESPEARE, William. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, v. I.
_______ The complet works. [on line]. Julius Kovac. http://www.shakespeare.sk.
Escuta, escuta, oh, escuta. Shakespeare, Hamlet.
No mesmo solo de Édipo Rei se enraíza outra das grandes criações trágicas, o Hamlet de Shakespeare. Porém no modo diferente de tratar o material idêntico manifesta-se toda a dessemelhança da vida anímica nestes dois períodos da cultura..." (Freud, 1900 [1899], p. 273).
... o efeito Hamlet sobre nós não é devido à presença de algo que sustentaria realmente em face de nós um inconsciente. Não temos relação com o inconsciente do poeta (...). Procurar nas obras alguns traços que informem sobre o autor não é analisar o alcance da obra como tal (p. 44).
Que não se veja nessa pequena extravagância na seriedade de nossa exposição senão nossa preocupação de lembrar que foi ao fool, oh! Shakespeare!, tanto na vida quanto nas letras, que ficou reservada a sina de manter disponível, através dos séculos, o lugar da verdade que Freud iria trazer à luz
(p. 667).
O objeto a é o objeto que sustém a relação do sujeito com o que ele não é [...] Mas acrescentamos: ao que ele não é, na medida em que não é o falo (p. 112).
Eles são elevados a um extremo, que a solidão definida em relação ao próximo está longe de esgotar. Trata-se de outra coisa – são personagens situados de saída numa zona limite entre a vida e a morte (p. 330).
... embora a morte de nosso caro irmão Hamlet ainda permaneça viva em nossa recordação, e convenha-nos manter enlutados nossos corações e seja nosso reino submetido a um só gesto de pesar... (Shakespeare [1602], 1995, p. 537).