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Poderia ser amor?

 

Sandra Edler

 

 

 

 

 

   

    Ana vivia um cotidiano tranqüilo. Apartamento próprio, filhos crescidos e todos os dias os mesmos afazeres. Cuidar da casa, dispensar atenção ao marido e aos filhos, fazer compras, manter o lar em sua calma vibração. Vivia, ela também, em calma vibração. Vez por outra, ecos da antiga juventude e sua pulsação. "Dela havia emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como se trabalha | com persistência, continuidade e alegria" (Lispector, 1998, p. 20). E assim criou, para si mesma, uma vida. Diferente talvez dos sonhos de uma jovem, ou melhor, da exaltada perturbação de seus dias de jovem mulher. "Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto" (p. 20).

 

    No conto Amor (1998), Clarice Lispector descreve a vida de Ana, uma mulher envolvida com as tarefas de dona-de-casa e mãe e cujo olhar em direção ao mundo parece vê-lo como algo ordenado. "Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida" (p. 19). Era bom sentir-se atarefada, envolvida às múltiplas atividades. "Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se" (p. 15). Era bom acordar já envolvida e programada em direção aos calmos deveres do dia.

 

    O início do conto nos coloca diante de Ana que, depois das compras, volta para casa de bonde. Com um meio suspiro, relaxa uns momentos nos quais a vida de casada, tão regrada lhe vem à cabeça em cenas sucessivas. Ao passar por um ponto vê um homem parado. Percebe tratar-se de um cego. Um homem cego que mascava chiclete. Nesse momento a sombra do próximo dever acudiu-lhe: os irmãos iriam jantar em sua casa, precisava apressar-se. Mas já estava capturada pelo instante: o coração lhe batia violento, o pensamento voava. Olhou o cego demoradamente, "como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos" (p. 21). A mastigação criava um movimento no rosto que simulava um sorriso que surgia e desaparecia. Algo bizarro. Uma máscara que, por algum motivo, parecia lhe insultar.

 

    Naquele momento, quem olhasse Ana "teria a impressão de uma mulher com ódio" (p. 22). Tudo se passou rapidamente. O homem permaneceu no ponto e o bonde arrancou. Mas foi o bastante. "O mal estava feito", escreve Clarice. Desprevenida, Ana foi jogada para trás, as compras caíram-lhe ao chão. Assustada, gritou. O condutor emitiu ordem de parada, os passageiros olharam-na com surpresa. O cego, da rua, percebendo algo, deixara de mascar e avançava, com as mãos inseguras, "tentando inutilmente pegar o que acontecia" (p. 22).

 

    O bonde recomeçou a andar. Ana tentou aprumar-se, arrumou as compras. Afinal, o que havia acontecido? Porquê uma cena tão simples, vista do bonde, havia lhe afetado tanto? Ana procurou acalmar-se para entender. No entanto, comenta Clarice, "o mundo se tornara de novo um mal-estar" (p. 22). Vários anos de composição e estrutura ruíram naquele instante. Onde estava a antiga ordem, o sentido das coisas?

 

    "O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada" (p. 23). Anos de vida apaziguada, uma espécie de crença na organização, rompiam-se naquele momento. Ana desce do bonde. Procura situar-se, dirige-se ao Jardim Botânico e refugia-se num banco. Persegue o silencia para voltar à calma. Respira profundamente e olha a sua volta. Tudo o que vê, no entanto, está fora do antigo tom e da moldura que arrumava e separava devidamente uma coisa da outra, ordem, desordem, ternura, grosseria.

 

    "Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos" (p. 25). O bom e o mau, o fascínio e a repulsa, o nojo agora conviviam. E a morte? "A morte não era o que pensávamos", observa Clarice.

 

    Guiada pelo cego, Ana perdeu um pouco a noção do tempo no Jardim Botânico e quando percebe o jardim já está fechado. Foi preciso chamar o vigia para voltar para casa. "Não havia como fugir. Os dias que forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava". Ana estava desestabilizada, insegura, "o que o cego desencadeara caberia nos seus dias?" "Quantos anos levaria para envelhecer de novo?" (p. 29).

 

    Em depoimento sobre o conto (Gotlib, 1995), Clarice admite que personagem e narradora misturaram-se a ponto de partilharem as mesmas emoções dada a intensidade com que inesperadamente cai com o personagem dentro de um Jardim Botânico não calculado, e de onde quase não conseguimos sair, de tão encipoadas e meio hipnotizadas  a ponto de eu ter que fazer meu personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechados, senão passaríamos a morar ali mesmo até hoje" (1995, p. 273).

 

    Autora e personagem vivem um momento de devaneio. A realidade  por instantes  distanciava-se do Jardim Botânico permitindo a ambas viajar num tempo mágico em que as obrigações ficaram esperando. Momento de criação que inclui talvez transgressão e ainda a possibilidade de transcender o cotidiano que, de alguma forma estreitara-se, não deixando abertura à fantasia.

 

    A fantasia e o devaneio interessaram profundamente Freud. Pouco tempo depois de analisar os sonhos articulando-os ao desejo inconsciente e abrir a possibilidade de sua interpretação, Freud volta-se à fantasia, ao movimento que inspira os escritores criativos, considerando-os aliados valiosos por transitarem em território desconhecido, "como prolongamentos do estado de vigília" (Freud, 1907, p. 19). Considerou, assim, o devaneio como uma livre imitação do sonho, alimento ao escritor criativo e especula o que anima a criação literária.

 

    Na infância, a ocupação favorita da criança é a brincadeira na qual interfere junto aos elementos e às referências do mundo alterando-os segundo seu desejo. Durante a brincadeira, a criança modifica a posição da casa, inverte a posição dos participantes e repete à exaustão determinado conteúdo dentro da perspectiva de fazer como os adultos fazem.

 

    Na opinião de Freud (1908),

    o escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção enquanto mantém uma separação nítida entre ele e a realidade (p. 150).

E Freud chama a atenção para a linguagem  no caso, a língua alemã  que mantém preservada a relação entre o brincar infantil e a criação poética como se pode observar nos termos comédia (Lustpiel), brincadeira prazerosa e tragédia (Tauerspiel), brincadeira lutuosa ou infausta.

 

    Não é fácil fazer a passagem entre a infância com sua onipotência e a idade adulta com suas exigências. Não é fácil, igualmente, abrir mão do prazer, sobretudo o prazer imediato, em nome de gratificações menores e á distância. Mas, como observa Freud, "o que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto..." (1908, p. 151).

 

    A atividade da fantasia substitui a brincadeira e recria, ao menos em parte, este prazer perdido. Raramente, no entanto, temos a oportunidade de observá-la ou mesmo acompanhá-la uma vez que o adulto, ao contrário da criança, não a expõe. Elas são vividas à sombra, como algo íntimo, longe dos olhos curiosos. Como a clínica psicanalítica nos revela todos os dias, é mais fácil ouvir um sintoma do que uma fantasia.

 

    As fantasias são desencadeadas a partir de desejos insatisfeitos e toda fantasia corresponde à realização de um desejo como "uma correção da realidade insatisfatória" (p.152). Existem duas formas principais de expressão: os desejos ambiciosos e os eróticos, conteúdos não excludentes uma vez que freqüentemente se apresentam juntos. Ser um herói no plano da fantasia, capaz de conquistar, obter admiração e despertar o amor, permite ao sujeito superar os limites impostos pela condição humana de realização do desejo: obedecer à lei e pagar o respectivo tributo. Permite, como contavam os antigos gregos, ultrapassar o métron  a medida de cada um e avizinhar-se ao êxtase.

 

    A fantasia é compensatória, dá suplência ao narcisismo trazendo de volta o eu ao lugar ptolomaico da infância ao qual teve que renunciar a duras penas face às exigências da realidade e do convívio com outros sujeitos. Mas Freud nos diz em 1909 que, muitas vezes, o homem bem sucedido é aquele que consegue transformar em realidade seus castelos no ar...Dada a origem infantil pode ser constrangedor ao sujeito revelar seus devaneios, da mesma forma que, para o ouvinte, pode causar mal-estar. Entra aí o escritor criativo que, trabalhando com o mesmo material consegue suavizá-lo, disfarçá-lo, encontrando formas poéticas e metafóricas para exprimi-lo.

 

    Freud chama a atenção  assim como havia feito em relação ao sonho  a cerca da existência de um elo, o fio do desejo que entrelaça passado, presente e futuro. O desejo pode fazer uso de elementos e cenas banais do cotidiano para construir, segundo os moldes do passado, um recorte em direção ao futuro.

 

    Nesse fragmento de conto de Clarice Lispector, narradora e personagem, identificadas expressam, de maneira lírica, os desdobramentos de sua fantasia, o devaneio no Jardim Botânico, a fuga ao cotidiano repetitivo enquanto novas percepções seguidas de interpretações reformuladas, ofereciam um convite à revisão de seu mundo com alegrias, frustrações, limites, defesas. Os mesmos conflitos, desejos não-realizados, medos, queixas incessantes que tantas vezes enredam o sujeito neurótico, servem de inspiração ao escritor que consegue transportar-se a uma outra realidade da qual depois  ainda que recorrendo ao guarda noturno  consegue retornar. E mais ainda, encontra meios de transmiti-la ao leitor produzindo, em lugar de desconforto, um momento de encantamento.

A expressão literária ilustra como o mesmo solo pantanoso, dores, mágoas, ressentimentos, corredores intermináveis, vãos, cantos escuros de nossa vida podem ser revisitados por um outro olhar e que existe, muitas vezes, um destino possível ao sofrimento, um destino transformador ao sofrimento que não a repetição interminável dele mesmo. E como repetimos! Hábitos, idéias, ângulos de visão. Como Ana antes do encontro com o cego, o sujeito neurótico repete, muitas vezes sem perceber, atitudes inúteis, condições de humilhação e sobretudo o ritual secreto da defesa.

 

    Daí resulta o estreitamento existencial que percebemos na personagem desse conto. Na ânsia de adaptar-se às imposições da vida adulta e suspeitando serem inconvenientes seus desejos, a personagem perdeu-se de si e converteu-se num autômato. Abandonando a trilha do desejo, considerando-o talvez um complicador, rebaixou a existência à dimensão curta e tripudiada das regras e convenções do dia-a-dia. Escolheu a via mediana, "...a depreciação do desejo, a modéstia e a temperança" (Lacan, 1988, p. 377), levando ao pé da letra a advertência escrita à porta do Templo de Apolo: nada em excesso, a virtude está no meio!

 

    "Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite" (p. 23). Acreditava, assim, haver uma lógica formal e um sentido regendo a vida. Era como se fosse uma troca. Abrindo mão de prazeres maiores, talvez indevidos, poderia usufruir o conforto, a ordem e sobretudo a paz! "E um cego, mascando goma despedaçava tudo isso" (p. 23).

 

    A vida que levara até então parecia-lhe agora "cheia de náusea doce, até a boca" (p. 23). Podia ver, quase sentir, dois espaços em contraponto: o ambiente do lar no qual vivia domesticada e o outro, mais sofrido, mais autêntico talvez e perto do coração selvagem.

"O que faria se seguisse o chamado do cego?" (p. 26)  pergunta-se. Como seria o mundo além das muralhas? Teria que seguir só, este seria o primeiro aspecto. Haveria lugares pobres, ricos, pessoas de todas as espécies talvez misturadas. A vida lhe parecia sem garantias, arriscada, louca, desnorteada. Seria possível voltar a planejar? A vida é horrível, conclui. "Mas seu coração se enchera com a pior vontade de viver" (p. 27). E foi um cego, pensou, um cego me levou ao pior de mim mesma.

 

    Até onde poderia ir se seguisse o chamado do cego? Pergunta-se novamente, que caminho seria esse? Um caminho desconhecido, atraente, assustador, imprevisível. Um caminho que a levaria a muito longe de si. Ou perto demais? Poderia levá-la ao desconforto, à inquietação, à criação talvez? "Como a repulsa que precede à entrega, era fascinante" (p. 25). "Ao mesmo tempo em que imaginário  era um mundo de se comer com os dentes" (p. 25).

 

   "Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio" (p. 25). O caminho estava entreaberto. Havia mais sombra do que luz, não se podia ver o fim, as margens eram pouco definidas, nada era claro. Era preciso avançar passo-a-passo, lembrando os versos imortais de Antonio Machado: caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao andar.

Escrito em 1950, período em que Clarice Lispector viveu por algum tempo no Rio, este conto pertence à categoria dos "contos de acontecimento" (Gotlib). Neles, algo aparentemente singelo, pinçado de um momento trivial do dia-a-dia traz algo de diferente e absolutamente não trivial.

 

    Mas, por que amor dá o título ao conto?

 

    De volta do Jardim Botânico, prossegue a noite de Ana. Até chegar à porta do edifício, parecia à beira de um desastre". (p. 26). Ela revê os filhos, ainda assombrada com a experiência. Procura ajudar a empregada nos preparativos para o jantar dos irmãos e sobrinhos. Tenta entreter-se com o que lhe é familiar para libertar-se da estranheza que a persegue. Estaria amando aquele cego, pergunta-se? Aquela atração poderia ser amor? E um enorme sentimento de solidão apossou-se dela. "...A vida arrepiava-a como um frio" (p. 27), o suor escorria entre os seios.

 

    Por fim é servido o jantar que, apesar de ter sido feito com menos ovos  grande parte foi quebrada durante o tropeção no bonde  ficou muito bom. Filhos, primos, irmãos e cunhados conversam diante das janelas abertas do apartamento numa noite de muito calor no Rio. Todos estão cansados do dia, "felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riem-se de tudo, com o coração bom e humano" (p. 28). Ana observa a cena, tentando prender o instante em suas mãos...

 

    Finalmente se despedem. Ana permanece na sala debruçada à janela do 9 andar. De repente ouve um estranho barulho na cozinha. O que foi agora? O marido, servindo-se de um café, deixou cair a xícara. Ana estremece. O marido abraça-a, sentindo-a diferente esta noite. E a conduz pela mão até o quarto "levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver" (p. 29).

Preparando-se para dormir, Ana penteia-se diante do espelho. "Se atravessara o amor e seu inferno" durante o dia olha-se agora "sem nenhum mundo no coração" (p. 29). E com um pequeno suspiro, como se apagasse uma vela, "soprou a pequena flama do dia" (p.29).

 

Referências bibliográficas:

 

FREUD, Sigmund (1907 [1906]). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Ed. Standard Brasileira. Rio de janeiro. Imago, 1976, v.IX.
_______ (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. Ed. Standard Brasileira. Rio de janeiro. Imago, 1976, v.IX.
_______ (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). Ed. Standard Brasileira. Rio de janeiro. Imago, 1976, v. XII.
GOTLIB, Nadia. Clarice, uma vida que se conta. Ática, São Paulo, 1995.
LACAN, Jacques (1959/60). O Seminário 7: a ética da psicanálise. Rio de janeiro, Zahar, 1988.
LISPECTOR, Clarice. Amor. In Laços de Família. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.

...sou uma pessoa que pretendeu por em palavras um mundo inteligível

e um mundo impalpável.
Clarice Lispector, A paixão segundo GH.

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