
PSILÍTERA
OFICINA DE PSICANÁLISE E LITERATURA
Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de estados patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e portanto, também da psicologia científica (Freud, 1907 [1906], Gradiva).
Psicanálise e Arte
Adelina Lima Freitas
No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados – em primeiro lugar, do próprio artista e, subseqüentemente, de sua assistência ou espectadores. As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam outras pessoas à neurose e incentivam a sociedade a construir suas instituições. Freud, O interesse da psicanálise do ponto de vista da ciência da estética.
A psicanálise estuda a criatividade vinculada à sublimação, embora não esgote, com esta perspectiva, a possibilidade de compreensão do processo criativo. Todas as formações da cultura constituem modalidades de sublimação. O discurso freudiano forjou este conceito, com a mudança de objeto da pulsão passando a ser um atributo fundamental na reordenação do circuito pulsional. É a invenção de um novo objeto, que seja ao mesmo tempo compartilhado por outros sujeitos, que revela esta proposta e permite uma abordagem sobre a criação (Birmam, 1994) .
Freud não se considerava um conhecedor de arte, afirmando que seu conteúdo lhe provocava uma atração mais forte do que suas qualidades formais e técnicas, apesar de reconhecer que, para o criador, estes eram os valores maiores. Demonstrava uma profunda admiração pelos artistas em geral, com uma preferência que se apresentava na seguinte ordem: em primeiro lugar a poesia, depois a escultura e a arquitetura, em seguida a pintura e por fim a música.
Ao escrever, em 1914, o texto sobre Moisés de Michelangelo, o autor desenvolve algumas de suas idéias sobre a arte, afirmando que este criador chegou aos limites extremos da sua expressividade. Diante de uma produção artística, cada um é afetado de uma forma particular, o que gera falas diferenciadas a respeito daquela produção. É a intenção do artista que prende a atenção do admirador ao ter como norte desperta-lhe a mesma atitude emocional, a mesma constelação mental que o impeliu a criar. Na perspectiva freudiana, contrária inclusive 'as formulações dos teóricos de arte que privilegiam a forma, para descobrir esta intenção é necessário alcançar inicialmente o significado e o conteúdo do que se acha representado na obra, ou seja, é preciso que haja uma interpretação para vir, a saber, a razão do porque alguém se sentiu afetado.
Entretanto, nas inúmeras passagens em que Freud trata da natureza da capacidade artística, geralmente se orienta não pelo pintor mas sim pelo poeta (Jones, 1953). Expressa sua admiração pelos autores literários, considerando-os inclusive à frente da ciência no conhecimento da vida psíquica. Desta forma, considera os três grandes gêneros, o teatro, o romance e a poesia, como outros dialetos do pensamento inconsciente. Acredita que o artista possui algum dom misterioso, admirável e tem algo a dizer sobre sua natureza em dois pontos essenciais. O primeiro refere-se ao vínculo entre o escritor criativo e o sujeito comum na conexão entre a brincadeira infantil e as fantasia da vida posterior. O modo como o poeta ou escritor transforma o desejo infantil inconsciente em obra de arte é seu segredo mais particular. Os métodos usados permitem ao leitor responder à satisfação desses desejos de um modo que em outras circunstâncias seria impossível. O segundo aspecto está referido à distinção entre prazer preliminar que Freud identifica como a misteriosa técnica artística e o prazer final.
Em Escritores Criativos e Devaneio (Freud, 1908 [1907]), a discussão diz respeito à sublimação como um destino oferecido à renúncia pulsional, à perspectiva do sujeito abrir mão de determinadas satisfações sem perder a posição desejante, a arte sendo designada como uma possibilidade de sustentação do desejo na relação do sujeito com o outro, numa referência alteritária.
É sem dúvida com a criação artística que encontramos o grau mais elevado de sucesso dos efeitos sublimatórios, pois o artista sabe dar uma forma particular às suas fantasias e conferir-lhes um valor universal que torna possível aliviar a outros da carga das suas próprias. Entretanto, esta elaboração implica num ocultamento do que é pessoal, onde os componentes particulares são transformados numa extensão tal que a interpretação e a sensibilidade do espectador se tornam indispensáveis para perceber a incompletude da mensagem. Por obedecer às leis da estética, ela seduz com uma gratificação prazerosa. A capacidade sublimatória, ao reorientar a pulsão permite o desenvolvimento da cultura, tornando possíveis as atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas. Embora este acesso aos bens da cultura implique numa perda de gozo e não constitua numa proteção completa contra o sofrimento, quando esta possibilidade não se apresenta, sérios distúrbios podem ocorrer. Desta forma, a capacidade de sublimação decide onde se localizarão os interesses de uma natureza narcísica, se um homem se tornará um neurótico ou um artista.
O processo sublimatório caracteriza-se por ser uma produção original, diferenciando-se tanto da neurose, onde o recalque provoca um desvio das excitações que retornam pela via sintomática, quanto da perversão que implica numa rigidez das moções sexuais infantis. A sublimação inclui, acima de tudo, uma capacidade da pulsão para encontrar novas satisfações, a partir da plasticidade da força pulsional, que decorre da possível troca de um alvo sexual por outro não sexual, a passagem de uma satisfação à outra. O destino da pulsão neste caso é a possibilidade de troca, seja do alvo ou do objeto. Contrariamente ao sintoma, que indica uma fixação a um objeto imaginário na satisfação pulsional, a sublimação está referida ao vazio e a criação é justo o que aponta para tal. Por outro lado, nas formações neuróticas há uma busca de satisfação privada, realizar por meios particulares o que se realiza na sublimação mediante um trabalho coletivo, com uma saída que permite universalizar o tipo de satisfação encontrada. Todavia, não é necessário que o objeto seja socialmente útil, que cumpra uma finalidade prática, mais sim que corresponda a ideais simplesmente simbólicos e a valores sociais vigentes numa determinada sociedade.
A grande questão aqui é que nem tudo pode ser sublimado, a sublimação diz respeito ao individuo e cada um tem seus limites quanto a esta possibilidade. A relação entre a amplitude possível da sublimação e o montante de atividade sexual necessária varia de um indivíduo para outro e mesmo entre sociedades.
A arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos realizados da imaginação – uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor (Freud, 1913, p. 223).
Freud afirma com esta passagem o caráter de acordo, o artista encontra um caminho entre uma realidade frustrante e o mundo dos desejos realizados no universo imaginário. Isto é possível na medida em que, por um lado, outros homens sentem o mesmo em relação às renúncias exigidas pela realidade e por outro, que a insatisfação, resultante da substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade é, ela própria, uma parte da realidade. A alteridade, então, se coloca como um critério da sublimação, a pulsão se inscreve na cultura pela produção de um objeto passível de compartilhamento por diferentes sujeitos. Freud (1932) associa, assim, à mudança de alvo uma outra referida ao objeto, além de considerar seu valor de laço social.
As relações de um instinto com a sua finalidade e com o seu objeto também são passíveis de modificações; ambos podem ser trocados por outros embora sua relação com seu objeto seja, não obstante, a que cede mais facilmente. Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como sublimação. (p. 21).
O artista compartilha com outros os impulsos de sua constituição psíquica, constrói uma forma criativa de disposição dos fantasmas, de domínio pulsional e de abertura para um outro campo de referentes permitido pela sublimação, com a manutenção da mobilidade da pulsão, o que, como vimos, está impedido na neurose. Ao configurar e inventar um novo mundo, a experiência criativa promove uma ruptura com as formas já presentes e estabelecidas, utilizando-se da transgressão metafórica referida a uma história individual, ao mesmo tempo em que inserida num universo de valores (Vital Brazil, 1992). O objeto imaginário resultante da articulação da força pulsional com o narcisismo do criador, se expressa na obra acabada, suscitando uma emoção poderosa que fascina o espectador.
Desta forma, o vínculo que enlaça os sujeitos é o do plano da criação. Freud estava convicto de que a fonte do impulso criativo devia situar-se em alguma importante fantasia inconsciente e, se o objeto é perdido desde sempre, é preciso inventar formas simbólicas de representá-lo. Determinada obra funcionará para quem a consome como objeto parcial. Logo, gostar de uma produção artística resulta da possibilidade que ela contém de instigar o sujeito, da provocação pulsional originada no momento de sua criação. No processo sublimatório o objeto é inseparável das elaborações imaginárias e culturais.
Tomando a afirmação de Pereyson (1966) a respeito da arte como invenção, criação do novo, de um fazer que enquanto faz inventa, podemos estabelecer uma analogia com o inconsciente como ato, presença de uma realidade desejante. A obra artística por suas características permite esta realização ao inventar, figurar, descobrir.
Existe, portanto, na arte, a possibilidade de sustentação do desejo pelo sujeito, a partir de uma vivência compartilhada, com o reconhecimento da alteridade. Na literatura, a metáfora transgressora é uma evidência desta possibilidade. O pulsional está intrínseco ao objeto em sua capacidade de sensibilizar. A obra de arte possui como especificidade produzir formas de afetação e de gozo que não dependem do domínio dos códigos e das características da produção dos objetos. Freud percebeu a função social da arte em seu efeito compensatório às insatisfações impostas pela civilização.
Um aspecto importante ligado à produção artística é a relação com o tempo. Bakhtin (1979) referindo-se à literatura afirma que a obra literária engrandece na medida em que se desliga ao seu ponto de origem para inserir-se na grande temporalidade enriquecedora. Ela alude ao passado para antecipar um futuro. No processo de sua vida póstuma, desdobra-se em novos sentidos e supera a si mesma, o que era no momento de sua criação. A obra artística ao ter uma devolução do outro pelo que provocou, toma um sentido universalizável e ganha diferentes dimensões ao longo do tempo com as transformações culturais.
Para concluir, é possível afirmar que a sublimação só ocorre a partir do enfrentamento do vazio da existência e permite ao sujeito suportar a falta, criar, transformar e introduzir no mundo algo que toma uma dimensão particular. O alvo inicial da pulsão, obter um gozo sexual direto, cede lugar a uma satisfação sublimada, graças ao prazer intermediário de gratificação narcísica do artista. É realmente este narcisismo que condiciona e favorece a atividade criadora da pulsão sublimada. E é como ato que a obra artística vai impactar algo na materialidade do objeto que é pulsionável instiga o consumidor, desperta um desejo de conhecer pela via da sedução e da provocação. Uma criação artística é uma tentativa do autor de negação e superação da sua incompletude, do sofrimento, da frustração, da transitoriedade e da finitude. Nesta tentativa sublimatória, tenta compartilhar com o outro, através dos recursos específicos de cada modalidade de arte e calcado no desejo, o prazer de transformar a vida.
No desamparo está funcionando o sistema desorganizador dos códigos, a pulsão de morte, o que coloca o sujeito frente à demanda de criar o novo pela perda da certeza. Não é possível encontrar o objeto perdido, mas é possível encontrar outra satisfação na sublimação, um vínculo erótico com o objeto, embora este seja inatingível enquanto alvo da satisfação sexual direta. Estranho paradoxo que sustenta os laços sociais e produz obras de beleza e originalidade insuperáveis aos olhos de todos e que se perpetuam ao longo do tempo.
Referências bibliográficas:
BAKHTIN, Mikail (1979). Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
BIRMAN, Joel. Desamparo, horror e sublimação. In Estudos em Saúde Coletiva, n.83, UERJ / IMS, 1994.
FREUD, Sigmund (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. IX.
_______ (1913). O interesse científico da psicanálise (II-G). Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. XIII.
_______ (1932). Conferência XXXII. Ed.Standard Brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1980, v. XIII.
JONES, E (1953). Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1989.
PEREYSON, L (1966). Os Problemas da Estética. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
VITAL BRAZIL, Horus. Dois ensaios entre psicanálise e literatura. Rio de Janeiro, Imago, 1992.
No exercício de uma arte vê-se mais uma vez uma atividade destinada a apaziguar desejos não gratificados – em primeiro lugar, do próprio artista e, subseqüentemente, de sua assistência ou espectadores. As forças motivadoras dos artistas são os mesmos conflitos que impulsionam outras pessoas à neurose e incentivam a sociedade a construir suas instituições. Freud, O interesse da psicanálise do ponto de vista da ciência da estética.
Quando um escritor criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes ... o escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. (p. 157).