
PSILÍTERA
OFICINA DE PSICANÁLISE E LITERATURA
Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de estados patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e portanto, também da psicologia científica (Freud, 1907 [1906], Gradiva).
Sérgio Paulo Rouanet
Entrevista a Marina Rodrigo Octavio Hermeto, realizada em 13 de maio de 2008, na Biblioteca Lúcio de Mendonça, Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro.
SÉRGIO PAULO ROUANET é carioca, nascido em 1934, a 23 de fevereiro. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais, longa carreira diplomática em postos nos EUA e Europa, Secretário Nacional da Cultura no decorrer de 91-92. Mestrado em Economia, Ciências Políticas e Filosofia, e doutorado em Ciências Políticas pela USP. Membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filosofia, do Instituto Histórico e Geográfico e do Pen Clube. Recebeu a medalha Goethe, oferecida a personalidades estrangeiras que se destacam na difusão da língua e da cultura alemã no mundo.
Às 16h30min, pontualmente, chega Rouanet e nos encontramos no hall do Petit Trianon no qual já o aguardava. Apresento-me e subimos juntos para a biblioteca Lúcio de Mendonça. Dirigimo-nos para um ambiente separado do salão principal, sentando em duas confortáveis e amplas poltronas. Estávamos à vontade um com o outro, talvez pelo fato de haver uma longa amizade entre ele e uma prima que foi quem nos aproximou.
Como já havia lhe enviado um e-mail no qual relatava sobre a Oficina de Psicanálise e Literatura da SPID e a nossa intenção de publicar um livro com textos focalizados nesta interseção eu digo que gostaria de... Neste momento ele me interrompeu amavelmente dizendo: "Não, não posso assumir o compromisso de um texto para este ano". Afirmei que já sabia disto, não estava vindo lhe encomendar um texto, mas sim entrevistá-lo com vistas a publicar a transcrição de nossa conversa juntamente com os outros trabalhos, todos visando esta interlocução.
Rouanet prontamente colocou-se a minha disposição para responder ao que lhe perguntasse. Para facilitar a transmissão copio as perguntas elaboradas previamente, seguindo-se a cada uma a transcrição da resposta dada. Afirmo que nossa conversa foi mais rica do que meu relato escrito.
M – Li numa entrevista que você deu à revista Percurso que sua procura pela psicanálise deu-se há mais de 30 anos quando morava em Genebra, achando que foi por curiosidade intelectual apenas. No entanto foi "fisgado" pelo analista que após ouvi-lo numa de suas dissertações orais sobre a teoria psicanalítica, lhe favoreceu entrar no papel de analisante deixando a ele o de analista, ao dizer-lhe que você havia esquecido de trazer a bibliografia referente a sua fala, e que estaria esperando-o para a próxima sessão. Como nosso foco de interesse é a interseção entre psicanálise e literatura, pergunto quando você começou a ler psicanálise e por qual texto?
R – Talvez a partir do meu interesse por Adorno, Horkheimer, enfim, pela escola de Frankfurt, cujo foco é a interação entre o marxismo e a psicanálise. Eles haviam publicado em 1936 um trabalho intitulado Estudos sobre autoridade e família, e minhas palestras baseavam-se nestes autores e em como pensar as questões ligadas ao social. Assim, de certo modo, cheguei a Freud a partir de Marx . Tenho que confessar que abordei Freud cheio de preconceitos, mas isso não durou muito. Lembro-me que numa conversa com Leandro Konder, esse sim um marxista duro e puro – mais puro que duro - ele me disse que sua primeira reação ao ler A interpretação dos sonhos foi: "Esse cara sabe das coisas!" E é verdade, eu estava justamente descobrindo isso, que o cara sabia das coisas! Depois daquela parte inicial, que, alíás, é muito chata, como o próprio Freud admite, porque nesse capítulo ele tinha se imposto a obrigação de resumir o pensamento dos outros, e sobretudo depois que ele entra na descrição do aparelho psíquico e dos mecanismos do sonho, tudo fica fascinante. Realmente deixei de lado meus preconceitos e mergulhei na leitura freudiana, porque percebi que estava diante de um novo continente teórico.
M – O que poderia nos dizer sobre a interseção entre literatura e psicanálise?
R – É ampla. Há alguns anos atrás escrevi um artigo que saiu num livro de cujo nome não me lembro bem, algo como "Um novo olhar psicanalítico" lançado no Rio Grande do Sul." Nesta hora sua mulher Bárbara junta-se a nós, lembrando que a publicação foi organizada pelo casal Nize e Luiz Ernesto Pellanda e editado pela Vozes*; retirou-se depois de alguns minutos para ler na sala ao lado. Rouanet segue falando sobre o leitor voraz que Freud foi e como se utilizou de textos literários para legitimar suas descobertas. Entusiasma-se falando de literatura, dos clássicos, de Sófocles, dos vários momentos em que Freud cita os grandes escritores para dar respeitabilidade a suas teorizações. Muito especialmente Goethe e Shakespeare. No livro citado diz que seu capítulo era sobre a relação entre Freud e Goethe. Chega a fazer uma afirmação considerada por ele próprio uma heresia: "O bom leitor de literatura não precisa ler sobre psicanálise! Machado de Assis é leitura indispensável para psicanalistas. Tanto a literatura quanto a psicanálise lidam com os mesmos materiais e chegam aos mesmos resultados, ainda que por outros caminhos. Há uma relação de imanência entre literatura e psicanálise.
M – O seu trabalho Os 10 amigos de Freud é sem dúvida um trabalho de fôlego, ao qual foram dedicados anos de pesquisa e resultou num panorama delicioso sobre a literatura apreciada por Freud. O que mais me atraiu entretanto foi sua abordagem psicanalítica a cada um dos autores e especialmente a Freud. Você se dá conta de que escreve como um psicanalista?
R – Não, não me dou conta. Mas não é totalmente acidental porque leio muito sobre psicanálise. Basicamente Freud. É comum em conversas com psicanalistas eles falarem de Bion, Klein, Lacan. É claro que essas leituras são indispensáveis, porque a psicanálise não parou em Freud. Mas penso que os psicanalistas deviam ler mais Freud!
M – No seu livro Interrogações você afirma a interdependência da psicanálise e da literatura, citando Freud na Gradiva de Jensen. Você, muito didaticamente, distingue três registros sob os quais a literatura aparece insistentemente na obra de Freud – o hermenêutico, o clínico e o legitimatório. Poderíamos dizer que o trabalho de Freud sobre Da Vinci é um exemplo do registro hermenêutico?
R – Sim.
M – Poderíamos dizer que, fosse você psicanalista, em Os 10 amigos de Freud você teria feito uma obra calcada na função hermenêutica tanto quanto na legitimatória?
R – Sim.
M – Uma preocupação da atualidade é com a eficácia da psicanálise. Perguntam-se alguns se ela ainda terá lugar. Concordando com sua colocação de que a cientificidade foi uma condição epistemológica para o advento da psicanálise e efetuando um salto para a contemporaneidade, quando creio que podemos concordar que a psicanálise se situa entre arte e ciência, margeando estes campos do saber e constituindo-se como um campo próprio com suas interfaces, pergunto a você se não seria exatamente aí que psicanálise e literatura se entrecruzam?
R – Sem dúvida, porque para Freud o conhecimento obtido pela arte, e principalmente pela literatura, é da mesma natureza que o conhecimento obtido pela ciência psicanalítica. A arte e a psicanálise se encontram num terreno que lhes é comum, o inconsciente. O que difere é o método, intuitivo num caso, e baseado na observação científica, no outro. Aliás, esse lado não-excludente da psicanálise, de ser ao mesmo tempo uma coisa e outra, ou de não ser exclusivamente nem uma coisa nem outra, caracteriza a psicanálise como um todo. Considero a psicanálise uma espécie de disciplina sem lugar, entre uma coisa e outra, uma disciplina do interstício: ela não é habitante exclusiva nem do corpo nem da mente, nem do mundo da natureza nem do mundo da cultura, nem da teoria nem da prática. O mesmo pode-se dizer da relação da psicanálise com a ciência. A psicanálise não pode existir fora da ciência, porque é graças à ciência que ela se demarca da filosofia, deixando de ser uma simples concepção do mundo. Freud não abre mão disso: para ele, a psicanálise é uma ciência. Ao mesmo tempo, ela só pode advir para a ciência pela subversão da ciência, pois a ciência do seu tempo não podia aceitar a realidade do inconsciente. Foi imperioso para Freud afirmá-la ciência, caso contrário ela seria apenas uma techné, uma técnica. Mas é uma ciência cujo objeto não pode ser definido pelos procedimentos habituais da ciência empírica, é científico, o inconsciente. Traz esse paradoxo. Ela afirma o conflito. Voltando a sua pergunta sobre a eficácia da psicanálise, ela é certamente eficaz para a compreensão dos fenômenos sociais. Freud tinha consciência o tempo todo que não podia fazer uma psicanálise da alma sem, num certo sentido, fazer uma psicanálise da história e da sociedade. Na época, isso era considerado psicanálise aplicada. Talvez tenha chegado o momento de inverter a ênfase. A psicanálise que se faz dentro dos consultórios é que deveria ser vista como aplicada. Penso que o próprio Freud no final da vida estava meio pessimista quanto à possibilidade de cura. No início, com as histéricas, tinha sido um sucesso maravilhoso. Acho que muito psicanalista deve ter saudade do tempo em que para provar que a terapia funcionava, bastava remover uma tosse histérica, uma paralisia motriz ou uma alucinação visual. As doenças hoje tomaram outra face, apontando para mais para a demanda narcísica por uma gratificação imediata que para a privação e para a repressão, e os sintomas se tornaram correspondentemente mais difíceis de circunscrever e de eliminar. Mas penso, de todos os modos, que a psicanálise individual sempre terá seu lugar. Ninguém fica 100% bom de sua neurose, mas a psicanálise pode ajudar-nos a conviver com ela em alguma medida, a tomar consciência das causas psíquicas de nossos sofrimentos, a esclarecer os motivos que nos levaram a certos comportamentos e emoções irracionais, etc. Não é tudo, mas é alguma coisa.
M – Você concordaria que poderíamos abri seu texto "Interrogando a Psicanálise" acrescentando ao título "Mefistófeles no divã" uma conjunção aproximativa, estendendo-o para "Mefistófeles e Freud no divã"? Justifico minha ousadia em fazer esta proposta, baseando-me nos numerosos indícios que você nos traz apontando para a identificação entre Freud e Goethe.
R – Sim, sem dúvida. Acho mesmo que Freud tinha em si a dualidade Fausto-Mefistófeles. Seu lado fáustico estava na sua ambição de saber, de tudo conhecer, de anexar à psicanálise praticamente todas as áreas do conhecimento. Ele era Mefistófeles por sua capacidade de dizer não: não à ciência oficial, não aos caminhos batidos, não à guerra. Ora, no poema de Goethe, Mefistófeles é o espírito que nega sempre, der Geist der stets verneint. Digamos que sejam os dois lados do Iluminismo, o que afirma e o que nega. No artigo que eu citei no início da nossa conversa, publicado no livro organizado pelo casal Pellanda, eu aprofundo bem mais que no Interrogações as relações de Freud e Goethe.
M – No capítulo "A cientificidade da psicanálise" (do livro Interrogações) você emprega o adjetivo adlerariano, ao invés de adleriano, referindo-se a caracterização de sonhos: "sonhos junguianos, freudianos, adlerarianos". Foi deliberadamente ou inconscientemente? Ato falho, ou chiste?
R – Puxa, é verdade? Você saberia localizar aonde? (mostrei-lhe a citação, na página. 117 do livro). Não, não me parece que seja nem chiste nem ato falho. Foi erro de impressão mesmo. Conscientemente, se eu quisesse fazer um jogo de palavras com a palavra "ariano" não escolheria Adler, e sim Jung.
M – A psicanálise pode ser vista como uma ciência do social, especialmente se valorizarmos o texto de 1908, A Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna. Como possibilidade de transformação do mundo e pelo lugar de destaque que ocupa para a compreensão dos problemas sociais, não há o risco de se transformar a psicanálise numa utopia ideológica?
R – Não vejo este risco. Mas talvez dependa do que você chama de utopia ideológica. [Digo que imagino ao fazer essa pergunta que a psicanálise possa ser alçada a uma posição dogmática, ideológica neste sentido, e com isso fechar um campo de possibilidade de crescimento social]. Não, não há nenhuma utopia fechada no horizonte do freudismo, porque ele recusa todo tipo de dogmatismo, qualquer idéia de uma reconciliação final do homem consigo mesmo, e do homem com a civilização. Esta seria o que você chama de utopia ideológica. Mas é possível vislumbrar sim, uma utopia aberta, não-ideológica, que é uma simples idéia reguladora, no sentido de Kant, algo que não se pode alcançar nunca, mas à qual não se pode renunciar. É a utopia, no plano individual, de um homem liberto de todo inconsciente patogênico, e no plano coletivo, de uma civilização sem mal-estar, da qual tenha sido banido o conflito entre indivíduo e sociedade.
M – A partir da leitura de Riso e melancolia, podemos dizer que um processo de análise é shandiano, já que vemos inúmeras interferências entre as digressões e fragmentações da narrativa principal?
R – Creio que sim. A descrição linear de uma sessão de análise é impossível. A descrição linear de um sonho é impossível. Não havia pensado nisto, mas a narrativa do analisante pode ser considerada shandiana.
M – Ainda em referência a Riso e melancolia, no capítulo que trata da subjetivação do tempo e do espaço, características do inconsciente tal como conceituadas por Freud, podem ser reconhecidas?
R – Sim, claro.
M – A psicanálise valoriza grandemente o processo de subjetivação. Podemos aproximar a fala do analisante, especialmente valorizando os chistes e atos falhos, de uma narrativa literária?
R – Mas sim, por certo, e sugiro que você escreva sobre isso!
Despedimo-nos com meus agradecimentos pela generosidade com que ele me recebeu e minha intenção de aceitar o desafio que fez ao sugerir que eu escrevesse sobre narrativa em análise.
* A publicação é Psicanálise hoje: uma revolução do olhar. Orgs: PELLANDA, Nize e PELLANDA, Luiz Ernesto Cabral, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1996