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O duplo na literatura e na psicanálise: William Wilson

 

Adelina Helena Lima Freitas


 

 

 

   

    O conto fantástico é uma modalidade de narrativa que associa imagens, tempo e espaço, numa forma particular de subversão da realidade ao dar um passo além desta. Caracteriza-se por uma hesitação, aspecto marcante da literatura fantástica que corresponde à relação complexa entre o racional e o irracional, ou mesmo, entre a realidade e o sobrenatural que afeta o leitor quanto à sua percepção, à linguagem e ao sentido dos fatos relatados. O texto, então, se nutre de um frágil equilíbrio que balança em favor do inverossímil e acentua-lhe a ambigüidade (Rodrigues, 1998).

 

    Podemos ainda, pautados pelo saber psicanalítico, localizar o conto fantástico como uma experiência que ocorre nos limites do real, onde o texto literário apresenta estreita relação com o inconsciente. A ficção permite um efeito de estranhamento maior do que a vida cotidiana ao viabilizar uma identificação do leitor com o escrito, sem o compromisso com a realidade. O estranhamento relaciona-se a uma série de fenômenos que fazem parte do universo infantil tais como: a onipotência do pensamento e do desejo, o determinismo e o acaso, o duplo, o olhar etc. São antigas crenças que retornam, muitas vezes, com um colorido de loucura e nonsense.

 

    Freud trabalha este tema em seu texto O estranho (1919). Usa as palavras opostas heimlich / unheimlich, em alemão, para identificar tanto aquilo que é familiar, íntimo quanto o seu oposto, o secreto, o estranho, o assustador, elementos que apontam para os aspectos paradoxais e contraditórios presentes na sua significação.

 

 

 

 

 

    A partir do conto de Hoffmann, "O homem de areia", Freud demonstra a inquietação presente neste tipo de produção literária, representada pelos episódios de estranheza do personagem central, Nataniel, além de apontar para a ocorrência deste fenômeno nos fatos da vida cotidiana. Exemplifica este aspecto com a descrição de uma experiência vivida numa viagem de trem, em que toma como uma outra pessoa sua própria imagem refletida no espelho da porta, o que lhe provoca uma sensação de surpresa, até conseguir reconhecer-se naquela figura. Entretanto, como dito anteriormente, embora registre a presença destes fenômenos comuns na vida diária, Freud privilegia a ficção para teorizar a respeito destas ocorrências.

 

    A experiência de estranheza provém dos processos reprimidos, existe uma relação intrínseca entre o unheimlich e o inconsciente. No estranho há uma reapropriação do passado em função do presente que de alguma forma faz com que este passado retorne com um viés de surpresa e temor. As relações entre unheimlich e o inconsciente implicam, então, por meio de um sentimento de estranheza que nos castiga e atormenta, a impossibilidade de esquecer o desejo e trazem à tona a outra cena que nos aliena de nós mesmos, exigindo a busca de um sentido (Portugal, 2006). Esta particularidade está presente, segundo Freud, no uso lingüístico, heimlich / unheimlich, justo por tratar-se de algo que não é novo mas sim íntimo, obscurecido pelo recalque, como expresso nas palavras de Schelling citado pelo criador da psicanálise: "unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz" (Freud, 1919, p. 282).

 

    O estranho diz respeito ao narcisismo, tema que nos remete à questão do duplo, que Freud trabalhou através do sentimento de estranheza e Lacan desenvolveu com a experiência do Estágio do espelho. A Psicanálise considera o narcisismo como um elemento estrutural do psiquismo, indispensável para a constituição do eu e sua diferença em relação aos objetos. A criança, ao nascer, não tem a vivência de um corpo totalizado e sua primeira imagem unificada lhe é oferecida pelo adulto que cuida dela, em geral a mãe ou quem ocupa esta função. Neste processo, então, uma imagem é oferecida à criança que a ela se identifica e pode, assim, reconhecer-se, formando o que Freud chama de duplo (Freud, 1919, p. 291). A relação com o outro neutraliza para o bebê a experiência originária angustiante de fragmentação, embora ao custo de uma alienação ao que este outro oferece. Esta experiência é organizadora para a criança, todavia se, depois de superado este estágio que permite ultrapassar a dificuldade de sua discriminação com o próximo, a experiência de duplicação retornar, muda seu sentido de asseguradora do eu para o de estranheza angustiante, além de expressar o caráter agressivo que compõe muitas vezes esta situação.

 

    Edgar Allan Poe é considerado um mestre da literatura, inserindo-se na categoria de autor fantástico, ou seja, aquele que:

 

 

 

 

    Os temas do narcisismo, morte, agressividade, invasão do objeto hostil, identificação ao semelhante, estão em pauta na obra de Poe (2003). "William Wilson" é um conto que mostra, de forma clara, a relação da agressividade imaginária presente na história de um jovem que encontra, em diversos momentos, um outro exatamente igual a ele, um duplo que lhe suscita sentimentos distintos, até chegar ao desejo de morte. O personagem central da trama relata, já próximo da morte, os desmandos de sua vida, fazendo uma retrospectiva sobre os estranhos encontros com um rival, em tudo igual a ele, na realidade um duplo, bem como, os sentimentos decorrentes destas experiências. As lembranças da infância o levam ao colégio interno, a um homem que apresenta uma duplicidade - era o pastor da igreja e o diretor tirânico da escola.

 

 

 

 

 

    O casarão impressionava Wilson, era misterioso, um palácio encantado, impossível de ser controlado e conhecido, com "suas voltas e reviravoltas e um mundo de subdivisões incompreensíveis" (ibidem) e compartimentos onde passava seus momentos de angústia por ter que enfrentar o diretor, reverendo Dr. Bransby. Wilson atribui a este tempo e lugar o desenvolvimento para o erro e o crime, com sua rotina, ordens, estudo, lições, passeios jogos e intrigas. Logo sua ascendência sobre os colegas se manifestou, exceto com relação a um que, embora não fosse seu parente, tinha o mesmo nome e sobrenome, um "xará" (p. 88) o qual, ao longo do conto, aparece em diversas situações. Ele foi o único capaz de competir e contestar a liderança de Wilson. Apesar de todos os seus esforços para submetê-lo, o "xará" resistia e gerava um medo incompreensível em nosso narrador, pois não se limitava à competição nos estudos, jogos, esportes e recreio, mas interferia nos seus propósitos, obstinadamente. Se fossem irmãos teriam sido gêmeos pois até a data do nascimento era a mesma. O propósito do duplo era contradizê-lo, irritá-lo e mortificá-lo. Entretanto, não conseguia odiá-lo apesar de brigarem diariamente,

 

 

   

 

 

    O sentimento de estranheza se dá quando processos infantis primitivos são reanimados por uma impressão exterior, ou quando convenções primitivas, superadas, parecem encontrar nova confirmação. Este efeito que emana da onipotência das idéias e da imediata realização de desejos, tem a ver com nossa primitiva crença na realidade destes fatos. São antigas convicções que sobrevivem em nós à espreita de confirmação. Nas lembranças de Wilson verificamos o aspecto sombrio da casa que o excitava quando criança, produzindo fantasia terrorríficas, além da duplicidade da função paterna encenada pelo Reverendo - doce / monstruoso, com suas ordens e exigências que podem ser associadas ao duplo acusador presente no conto. Fica claro também, no trecho citado acima, como o eu narcisista, no processo de identificação, ama seu igual mas também odeia que este outro tenha vida própria.

 

    Em outras passagens o autor demonstra a relação deste outro com o passado que alimentava a consciência, e como sua aparição denunciava o domínio que exercia sobre Wilson:

 

  

 

 

    Wilson explicita neste trecho, a existência relação intrínseca entre a estranheza e o que fascina, pois ela implica em "reconhecer a representação familiar daquilo de que somos feitos..." (França, 1990, p. 86).

 

    Como dito anteriormente, o narcisismo, que numa época precoce diz respeito a um ponto de origem, compreende, posteriormente, um ciclo de retorno em diferentes momentos da vida do sujeito com sentidos diversos e efeitos inesperados. O fenômeno do duplo surge em todas as formas e em todos os graus de desenvolvimento, sustenta Freud (O estranho, 1919). Aparece com relação à percepção, ao conhecimento, aos sentimentos e às experiências em comum entre dois personagens. Outra possibilidade está na identificação que o sujeito estabelece com o outro, de forma a se colocar em dúvida a respeito de quem é quem. Por último, pode ocorrer o retorno constante de uma mesma coisa que dá a percepção de duplicidade pela ação do destino.

 

    O duplo ocorre, então, em três níveis: duplicação, divisão, troca ou confusão, relacionado aos registros imaginário, real e simbólico formulados por Lacan. No plano imaginário encontramos as duplicações de imagens, idéias, sósias, rivais, semelhanças em atos e delitos, além dos processos mentais que saltam telepaticamente para outrem. No nível simbólico o que aparece é a partição ou divisão do aparelho psíquico, o sujeito duvida a respeito de si mesmo, deixando-se encarnar por um eu estranho. Aqui está em jogo a função da censura. No registro do real impera a confusão, um intercâmbio do eu com o outro, vivências delirantes com idéias de influência e alteração da consciência, reforço constante da mesma coisa, estranha repetição dos traços, atos, feitos e nomes (Portugal).

 

    O mito grego de Narciso revela o vínculo com a morte, o que remete em psicanálise ao tema da agressividade, ligada à invasão do objeto hostil e identificação ao semelhante. Como descrito anteriormente, é na relação com o semelhante como suporte dos processos de identificação e separação que Lacan (1949) teoriza acerca da constituição do eu e de seu duplo que, além de permitir um reconhecimento de si, também funciona como um diferente com o qual a criança irá, inicialmente, rivalizar. Isto explica a ambivalência própria desta relação, além da agressividade correlativa da identificação com o outro e a conseqüente hostilidade que se instala a partir daí. No trabalho "A agressividade em psicanálise" (1948) apresenta suas teses a respeito da agressão, articulando-a ao momento constitutivo do Estádio do espelho. Uma delas diz respeito à agressividade como tendência correlativa de um modo de identificação narcísica que determina a estrutura formal do eu e dos seus objetos. Na primeira situação especular do Estágio do espelho eu não sou eu, mas sim o reflexo daquilo que o outro vê em mim. Isto fundamenta a "identificação ao semelhante" com sua agressividade inerente e remete à reação agressiva do sujeito frente a esta simetria. A tensão mortal que se estabelece pela rivalidade absoluta com o outro necessita sofrer algum tipo de regulamentação simbólica, através da organização edípica, para que se possa transcender à esta agressividade constitutiva. Este processo, no entanto, encontrará situações de possíveis embaraços e vacilações. Sempre que ocorrerem mudanças na posição do sujeito e seus objetos que resultem num abalo de sua imagem, o resultado poderá ser uma agressividade indicativa do caráter precário de qualquer estabilidade psíquica.

 

    Este tema da rivalidade associada à situações de agressão tem no conto Willian Wilson de Poe um relato exemplar. Ao longo do escrito, o nível de tensão aumenta, decorrente do enigma que este "xará" representa para o personagem, seus sentimentos hostis e a fantasia de que o outro quer destruí-lo, o que resulta num medo que aos poucos se torna incontrolável. Inúmeras passagens denunciam esta situação como podemos destacar:

 

 

    

 

 

 

 

    Poe descreve, de forma marcante, a hesitação característica do conto fantástico, mas que também podemos aproximar dos processos inconscientes na neurose, efeito da repressão que coloca a dúvida para o sujeito. O autor não esclarece a questão, pelo contrário, só irá aprofundá-la até o final. Se até este momento a igualdade produzia ambivalência, raivas e rivalidades, a dúvida que se instala com o reconhecimento de que poderia ser uma imitação, coloca Wilson frente a um enigma insuportável e terrível. À falta de sentido, só o silêncio responde, faltam as palavras que poderiam dar alguma organização ao impacto sofrido por Wilson. Só lhe resta fugir, nunca mais voltar. O fenômeno do duplo em sua vertente imaginária, um sósia, que antes incomodava nosso personagem, aparece agora em sua vertente de real incompreensível, sem resposta à constatação que o surpreende despreparado para tal, o que gera horror e perguntas sem respostas.

 

    Wilson se retira do colégio mas não se tranqüiliza pois, a partir daí, a vida desemboca em desregramentos e loucuras cada vez mais intensos. Em outra escola, Eton, recomeçam os vícios. Uma noite convida alguns colegas para jogar e beber. Já tarde, alterado pelo álcool, foi chamado por alguém que o procurava: o "xará" voltara "vestido exatamente da maneira como eu me trajava no momento. Precipitou-se para mim e sussurrou ao meu ouvido: William Wilson" (p. 91). As palavras sussurradas, misturadas às lembranças do passado, provocam-lhe um estado de choque enquanto seu duplo volta a partir. "Durante semanas pesquisei, investiguei, tentando descobrir. Quem era este Wilson? E de onde ele vinha? O que desejava de mim? Porque eu?" (p. 91). Perguntas novamente sem respostas que atestam o que há de surpreendente em cada aparição. Frente ao estranho, a memória aparece não apenas como a depositária das experiências vividas mas revela o inédito que impacta e espera por um novo sentido. O duplo, então, que já foi garantia de integração se apresenta como um estrangeiro interpretado como ameaçador, numa repetição que dá medo e gera confusão. Wilson vive, assim, sua impotência, divisão e frustração frente a este outro que não controla.

 

    É importante frisar aqui a implicação da voz ligada ao supereu na psicanálise. Este é um conceito que articula alguns pontos desenvolvidos separadamente ao longo da obra freudiana, resultando numa instância que congrega as funções de auto-observação, consciência moral e articulação dos ideais. Apresenta em sua constituição duas faces, uma associada à função normatizante da estrutura edipiana, à identificação ao pai e ao juízo crítico da consciência moral e outra expressa por seu aspecto tirânico, ligada ao isso, resíduo da pulsão de morte que exorta o sujeito ao gozo mesmo da morte. O supereu está indicado em Freud sob a forma de um imperativo categórico, que submete o eu com seu caráter agressivo e violento, além de exacerbar a consciência moral. Além disto, por estar associado à Tânatos, é um dos fatores determinantes da gravidade de uma doença neurótica, relacionado ao sentimento de culpa, que se expressa sob diferentes condições (Lima Freitas, 2005).

 

    Lacan afasta-se do ideal como uma das referências freudianas acerca desta instância ao formular o supereu com um caráter obsceno e feroz. Diferencia o ideal do eu do supereu. Atribui ao segundo, um caráter imperativo que mortifica o sujeito desde uma exortação a um gozo impossível. Não se coloca como um representante da lei, pelo, contrário, é mesmo seu reverso. Resulta, na realidade, de uma falha na lei simbólica, constituída por um discurso primitivo imposto, marcado por uma arbitrariedade básica.

 

    O traço imperativo leva o sujeito a situações extremas, de cunho paradoxal, nas quais a satisfação se dá no registro de uma lei implacável e incompreendida. Este caráter tirânico parece ser condição para o surgimento de atitudes imperativas, culpa e castigo. Podemos identificar aqui a função da voz da consciência como um importante elemento para este o entendimento dos terríveis conflitos que passam a atormentar o sujeito. Ao vigiar e julgar as atuações do eu, o supereu exerce sobre este uma censura, por vezes, de uma violência ímpar. Assim, falar em voz da consciência implica em reconhecer um lugar fundamental à marca auditiva, sinalizada por Freud e radicalizada na formulação de Lacan, que exorta o sujeito a uma ação da ordem do impossível. Aparece aqui o que há de mais devastador na experiência subjetiva: "o supereu (...) acaba por identificar-se ao que chamo a figura feroz, às figuras que podemos vincular aos traumatismos primitivos..."(Lacan, 1953 - 4, p. 123). Encarna, então, não a lei organizadora mas uma lei de caráter incompreensível, "voz que não se assimila, se incorpora". Ouvir implica obedecer, "(o sujeito) uma vez que ouve é conduzido..." (Lacan, 1955 - 6, p. 339). O discurso invade e o supereu presentifica seu caráter imperativo que mortifica, tiraniza e determina o sujeito na posição de comandado.

 

    Em nova escola, Oxford, Wilson se envolve cada vez mais com loucuras, bebedeiras, trapaças no jogo como meio de aumentar sua renda que já era enorme. Um dia chega um novo aluno, Glendenning, um nobre, rico, embora limitado intelectualmente. O jovem cai na teia do trapaceiro que havia planejado vencê-lo num jogo de cartas, assistido pelos amigos. O rapaz perdia sucessivamente, estava à beira da ruína total e os colegas começaram a desaprovar a disputa, quando a porta foi aberta e um estranho penetrou na sala envolto numa capa, com sua voz que soou no recinto como um sussurro e fez o narrador estremecer até os ossos. Era o "xará" que voltava para desmascará-lo: aconselhou aos presentes que examinassem o forro da manga esquerda de seu roupão e partiu sem demora. Só o aviso e a partir daí "... muitas mãos me agarraram e, na busca, tudo foi conforme ele dissera. (...) não houve mais nada além do silêncio de desprezo. Nenhum comentário.Eu teria preferido que houvesse" (p. 93).

 

    Novamente a falta de palavras para exprimir o impacto, o silêncio tão marcante no texto de Poe que se contrapõe a voz deste outro, um sussurro que denuncia, acusa, identifica os desmandos de Wilson. Aconselhado a deixar Oxford,

 

 

 

 

 

 

    Wilson resolve reagir, e num baile de máscaras, quando estava para atuar mais uma vez de forma desonesta, o sussurro dentro do ouvido interrompeu seu ato. "... senti um leve toque no ombro. E o maldito sussurro! Dentro do ouvido" (ibidem). Ali estava o "xará", vestido exatamente igual e ele, o rosto encoberto pela máscara de seda preta. Tomado pela reação afetiva intensa que o coloca numa encruzilhada, afetado pela impossibilidade de livrar-se deste outro, Wilson passa ao ato assassino: inicia uma luta curta e golpeia o rival várias vezes com sua espada no peito. Mas surpreso e horrorizado vê no espelho sua imagem refletida, manchada de sangue, pelo menos assim lhe pareceu. Mas era seu rival que agonizava, a máscara no chão.

 

 

 

 

 

    Poe expressa, neste final do conto, o duplo em sua vertente real, no intercâmbio de Wilson com seu "xará", em que impera uma confusa e estranha repetição da qual o personagem não consegue fugir. O autor também desdobra numa outra figura a voz da consciência. A ficção permite isto de forma mais clara, como vimos no início de nosso trabalho, embora não estejam descartadas estas divisões em casos graves, principalmente nas psicoses. A voz, que aparece cada vez mais imperativa e perseguidora, relaciona-se ao supereu, que tem na perspectiva freudiana uma fundamentação em impressões auditivas que irão constituir uma voz interior, marcando o rigor do sujeito com ele mesmo e do qual não consegue escapar. A concepção dos resíduos verbais, da consciência moral, do aspecto imperativo, do investimento dos discursos oriundos dos pais atestam esta fomulação. Wilson relata no início do texto ter herdado da família uma série de tendências, além de retratar o diretor de sua escola como um educador tirânico. A lei é transmitida de forma vocal e é sempre do outro que o imperativo moral nos comanda. Um outro que na formulação do supereu é internalizado. Wilson tenta fugir do seu perseguidor, mas isto é impossível, pois não se foge de si mesmo. Seu grande engano foi, no início do conto, se acreditar "uma vítima de circunstâncias superiores ao controle humano" (op.cit, p. 86), para só no final descobrir que o rival era ele mesmo, uma figura que personificava o supereu e seu imperativo - uma voz que o invadia, intimidava e da qual só se livrou eliminando-a atrav´s de sua própria morte.

 

Referências bibliográficas

 

FRANÇA, Maria Inês. Lapso de imagem. In Revista Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro, SPID, 2005, v. 24.
LIMA FREITAS, Adelina. Uma voz que comanda. In Revista Tempo Psicanalítico. Rio de Janeiro, SPID, 2005, v. 37.
FREUD, Sigmund (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1977, v. XIV.
_______ ( 1919). O estranho. Ed Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1977, v. XVII.
_______ (1923). O ego e o id. Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1977, v. XIX.
LACAN, Jaques (1948). A Agressividade em Psicanálise. In Escritos I. México, Siglo XXI , 1984.
_______ (1949). El estádio del espejo como formador del yo. In Escritos I. México, Siglo XXI , 1984.
_______ (1953 - 4). O seminário - livro 1. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
_______ (1954 - 5). O seminário - livro 2. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

Que dirá ela? Que dirá a horrenda consciência, aquele fantasma no meu caminho. 
Edgar A. Poe, William Wilson.

O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar (...) somos tentados a concluir que aquilo que é "estranho" é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo que é novo e não familiar é assustador... algo que de ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo estranho (Freud, 1919, p. 277).

... literalmente experimenta rupturas com a realidade, seja por meio das drogas, do cultivo de estados alterados de consciência, seja através de paranóias ou neuroses que o conduzem com freqüência a estados semi-alucinatórios, semi-delirantes, que contaminam sua ficção... (Tavares, 2007, p. 10).

    ... doce figura que pregava no púlpito (...) e o homem monstruoso que impunha o cumprimento da lei no colégio (...) as mais amenas recordações do início de minha triste carreira estão ligadas à vida escolar (...) era um lugar de sonho e que excitava a fantasia (...) a casa da aldeia, com as arvores gigantes, nossa prisão" (p. 87).

 ...é difícil definir meus reais sentimentos para com ele. Formavam uma mistura complexa e desigual. Animosidade petulante e ódio. Pelo contrário, alguma estima mais respeito, temor, um mundo de curiosidade (...) para muitos Wilson e eu éramos amigos ou companheiros inseparáveis (...) este estranho estado de nossas relações me favorecia os ataques... (p. 89).

Durante uma violenta discussão descobri sua pronúncia (...) algo que me chocou e ao mesmo tempo interessou (...) me fez lembrar coisas da minha primeira infância . Daí eu ter ficado com a impressão de que conhecera aquele estranho ser numa época muito distante" (p. 90) .

Uma noite resolvi pregar-lhe uma peça, com uma lâmpada na mão dirigi-me com cuidado, ao quarto do meu rival (...) pela respiração tranqüila vi que estava dormindo. Abri o cortinado devagar e deixei cair a luz no seu rosto, bem perto. Olhei. Um frio percorreu o meu corpo. Então eram aquelas as feições de Willian Wilson? Vi de fato que eram as dele, mas havia algo em torno delas que me fez tremer de febre. Vi então que não era. Pelo menos não era assim que parecia quando acordado. O que seria isto ? O mesmo nome, os mesmos traços, o mesmo dia de chegada ao colégio. Meu andar, minha voz, meus costumes, meus gestos! Seria tudo isto o resultado de uma imitação apenas? Horrorizado e trêmulo, apaguei a lâmpada e saí silenciosamente do quarto. Abandonei o velho colégio para nunca mais voltar (p. 91) .

    ... iniciei minha viagem num estado de horror e vergonha (...) fugi em vão. A má sorte me perseguiu. Paris, Roma, Viena, Berlim, Moscou! Mal eu punha o pé numa cidade, já possuía prova da passagem daquele Wilson antes de mim. Avisando, advertindo a todos a respeito do meu caráter. Tomado de pânico eu fugia dele como uma peste. E até aos confins da terra fugi em vão. E sempre, sempre me perguntando: Quem é ele? Que deseja? Sem nenhuma resposta. Ele existindo, me perseguindo, imitando-me outras vezes. E eu sem poder, em momento algum, ver bem as feições de seu rosto. Uma loucura. Eu sucumbia passivamente àquele imperioso domínio. (...) eu o odiava, mas o temia também (p. 93 - 4).

E tudo nele, da roupa até as feições do seu rosto era eu. A mais absoluta identidade. (...) falava. Não mais um sussurro. Mas como eu próprio, com minha voz, minhas palavras, minhas idéias, minha emoção. Minha agonia. Minha morte. E dizia: Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora em diante, tu também estás morto... Morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu vivias (...) e, na minha morte, vê, por esta imagem, que é a tua própria imagem: assassinaste a ti mesmo! (p. 95).

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