
PSILÍTERA
OFICINA DE PSICANÁLISE E LITERATURA
Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de estados patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e portanto, também da psicologia científica (Freud, 1907 [1906], Gradiva).
Psicanálise e literatura
Luiz Alberto Pinheiro de Freitas
Introdução
Freud, em 1930, ganhou o prêmio Goethe[1], pelo conjunto da sua obra, uma obra científica, mas que foi acusada de ser escrita como um romance. A acusação soa como um elogio e, mais será, quanto a pudemos comparar com escritos psicanalíticos que, de tal forma herméticos, mal podem ser compreendidos fora dos grupos semióticos a que pertencem.
Goethe (s/d) percebeu, um pouco antes de Freud, a importância dos primeiros afetos, dos sonhos e a necessidade de um autoconhecimento. Em Uma palavra para jovens poetas, ele recomendava aos mesmos a necessidade de se analisar continuadamente – "Apenas é preciso que cada um conheça a si mesmo, que saiba julgar a si mesmo..." (p. 10). Por estas razões é que Freud (1930), ao receber o prêmio, enviou sua filha[2] e um discurso no qual dizia que:
Freud utilizou-se da literatura durante todo o seu percurso na psicanálise. Vários exemplos podem ser apresentados: Édipo Rei e Hamlet na carta 71, Die Ritchterin [A juíza] na carta 91, Édipo Rei e Hamlet em A interpretação de sonhos, Delírios e sonhos de Gradiva, Contribuições a um questionário sobre leitura, Escritores criativos e devaneio, Dostoiévski e o parricídio, Prefácio a Edgar Allan Poe etc. Cumpre notar que Freud, em Resposta a um questionário sobre leitura (1906), citou como livros esplêndidos, as obras de: Homero, Sófocles, Goethe e Shakespeare – Ilíada, Édipo Rei, Fausto, Hamlet e Macbeth. Ele apreciava, especialmente, o bardo inglês, do qual compilou diversas citações – ele já havia notado quanto um homem como Shakespeare era capaz de, através dos seus escritos, apresentar várias referências ao inconsciente.
Qualquer romance já é uma apresentação interpretativa de um momento sócio-cultural que, anteriormente, já foi interpretado pela cultura, - em resumo, é apenas outra forma de interpretar uma interpretação já dada pela cultura. O personagem poderá apresentar maior ou menor possibilidade interpretativa, todavia, será sempre um representante de uma forma de ser numa determinada cultura; bem como, sua permanência na história, sua maior representatividade, está diretamente ligada a quanto mais for exemplar da cultura a qual estiver referido.
Não há literatura ou arte desligada da sua época, pois se inscrevendo ou não na "grande temporalidade" de Bakhtin (1970, p. 364) a obra jamais estará alienada do seu tempo, podendo ter maior ou menor consistência interpretativa (Freitas, 2001, p. 19).
Vital Brazil (1992) enfatizou a existência do que chamou de personagens permanentes - personagens universais, presentes em toda forma de literatura e que, dependendo da criatividade do escritor, podem oferecer alguma inteligibilidade sobre as matrizes da subjetividade. Um escritor conhece, como disse Freud (1907 [1906]), "toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar" (p. 18). Ele, apesar de não perceber as forças do determinismo inconsciente que organizam o seu percurso criativo, pode, através da sua privilegiada sensibilidade, fazer com que seus leitores fiquem "tocados" pela palavra dos personagens. E, tanto maior será o prazer quanto mais poder, o personagem, o herói ou heroína, permitir enganchamentos identificatórios.
Psicanálise em extensão
A psicanálise é um saber conjuntural e conjectural, que tem como exercício a prática da dúvida em constante movimento interpretativo. Tanto o texto, escrito como o falado, é, conforme afirma Bakhtin (1979), "o dado primário (a realidade) e o ponto de partida de todas as disciplinas nas ciências humanas" (p. 341). Portanto, qualquer cena literária ficcional é uma produção da cultura que pode ser analisada e interpretada sob o ângulo da psicanálise. O conteúdo fantasioso do herói em nada é diferente do experimentado por qualquer pessoa. O discurso do personagem está sempre aberto a múltiplas possibilidades interpretativas, permitindo assim, o exame da linguagem do desejo inconsciente – sempre presente em qualquer texto. Essa presença constante nos dá a possibilidade de conseguir alguma inteligibilidade sobre as nuances do subjetivo.
A psicanálise ao aproximar-se da literatura o fez, inicialmente, através do exame dos autores, procurando uma leitura do personagem apoiada na vida do escritor – a psicobiografia. O texto funcionava como uma patografia do escritor. Esse tipo de "psicanálise aplicada", que foi, inclusive, utilizada por Freud, traz a desvantagem de ficar referida a um acentuado exercício especulativo, na medida em que empobrece o texto. Como lembra José Américo Motta Pessanha (1992):
Se a psicanálise em intensão está referida a uma clínica sob transferência, a psicanálise em extensão refere-se às possibilidades de poder apresentar alguma interpretação daquilo que a nossa cultura apresenta como produções de arte. Assim sendo, podemos sempre procurar, através do texto literário, encontrar os personagens ditos permanentes (Vital Brazil, 1992), ou seja, aqueles que mais estão referidos às matrizes da subjetividade – procurar uma outra interpretação do herói, além da já oferecida pelo autor criativo.
As sublimações
Como afirmou Freud, em 1910, a grande maioria das pessoas "conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do instinto (pulsão) sexual para sua atividade profissional" (p. 27). Ou seja, a vida social implica que nossas pulsões encontrem uma outra forma para se satisfazerem - que sejam sublimadas, que possam substituir o seu objetivo primeiro por outros mais valorizados socialmente. A sublimação da pulsão é que permite o aparecimento das artes, das ciências e das religiões – são formas de apresentação da linguagem do desejo inconsciente.
As sublimações, através das artes, das ciências e das religiões, seriam formas de realização simbólica que se associam à criatividade humana, produzindo uma superação do automatismo instintivo. Essas realizações simbólicas podem ser alvo de interpretações, através do saber psicanalítico, na medida em que sempre podemos nelas encontrar a presença da linguagem do desejo inconsciente.
Em O Instinto e suas Vicissitudes (1915), Freud afirma que a sublimação é um dos quatro destinos da pulsão. Os outros seriam a inversão no contrário, o retorno sobre a própria pessoa e o recalque. O processo do estudo da sublimação inicia na correspondência com Fliess (Masson, 1985) no "Manuscrito L", segue nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Moral sexual "civilizada" e doença nervosa moderna (1908), Sobre o narcisismo, uma introdução (1914), O instinto e suas vicissitudes (1915), O ego e o id (1923), O mal estar na civilização (1930 [1929]), até a Conferência XXXIII (1932). Nessa conferência trata da modificação do alvo e do objeto da pulsão: "Um determinado tipo de modificação da finalidade e de mudança do objeto, na qual se levam em conta nossos valores sociais, é descrito por nós como sublimação" (p. 121), tendo duas vertentes, a da dessexualização do alvo e do objeto da pulsão.
Se o homem obtivesse satisfação plena através da pulsão sexual, não haveria erigido o seu mundo institucional. A dificuldade de uma completa e absoluta descarga sexual foi o fato motivador que levou o homem a abandonar, parcialmente, o prazer sexual e constituir uma civilização. A impossibilidade da pulsão em atingir seus objetivos imediatos fez com que as civilizações tivessem que oferecer objetos substitutivos, numa tentativa de atender, em parte, as demandas pulsionais. Vive o homem uma permanente busca por prazer, por isso está sempre tentando encontrar um objeto de desejo que lhe seja, minimamente, satisfatório. A pulsão sexual tem que encontrar outras vias de descarga e para tal tem que pegar emprestado outros caminhos para percorrer.
Mas é sem dúvida com a arte que encontramos o grau mais elevado de sucesso dos efeitos sublimatórios, pois o artista sabe dar uma forma particular às suas fantasias e conferir-lhes um valor universal que torna possível aliviar os outros homens da carga de suas fantasias (Lima Freitas, 1999, p. 12).
Qualquer criação com uma estrutura de sublimação "constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos (pulsões) de forma total pela civilização" (Freud, 1930 [1929], p. 118), ou, na frase modificada por Vital Brazil (1992), a sublimação nada mais é do que "um destino pulsional imposto pela cultura" (p. 84). Ele realiza, em uma outra cena, seus desejos insatisfeitos, se gratifica de forma substitutiva – prazeres compensatórios que surgem através da sua criatividade. A sublimação não só surge como uma imposição cultural, como produz efeitos que se inscrevem na própria cultura. É na criação cultural que se redescobre o prazer, resultante dessa atividade do pensamento cujas origens muitas vezes são inacessíveis. Em resumo: a renúncia como um destino da pulsão, e a presença do irrepresentável e o mistério da origem.
Os personagens e as identificações
Freud sempre apresentou o herói Édipo como exemplo paradigmático do que ocorre a todos os mortais, pois, já havia percebido que todo grande escritor, em suas obras, fazia de seu personagem um porta-voz do desejo inconsciente.
Toda obra é uma produção, e como tal apresenta o estilo do autor, sendo sempre um produto intimamente ligado ao seu produtor pelo traço do estilo. Sempre poderá a obra de arte fornecer alguma informação sobre o processo criativo do artista. Todavia, fazer uma leitura sintomal do texto, não permite, como afirma Pessanha (1992), a apreensão da significância polifonicamente constituída e instituída pela obra. Tal processo implica um reducionismo cientificista.
A análise de Gradiva, embora tenha sido constituída com a finalidade de mostrar a aplicabilidade dos conceitos psicanalíticos a um discurso literário, da possibilidade de uma interpretação do lugar simbólico do personagem, também "faz das personagens 'figuras' para a identificação do leitor, e ainda faz uma relação entre as personagens que valoriza a seqüência de um curso associativo" (Vital Brazil, 1996, p. 1).
Os grandes autores permitem uma aproximação entre literatura e psicanálise já que ambas podem, através da uma relação dialógica, promover a prática da dúvida em permanente confronto com a pretensa univocidade do sentido. É através dessa realidade dada aos personagens, notadamente aos personagens trágicos, que podemos interpretar, na dimensão do inconsciente, o que acontece a todos os homens.
Ao se examinar uma obra literária, temos que nos referir ao conceito freudiano de identificação. Por que será determinados personagens, e não outros, tornam-se extremamente significativos para a nossa cultura. Os personagens que permanecem ao longo da história -, não estão presos a nenhuma época porque representam, de forma incontestável, o que se passa com qualquer homem a qualquer tempo. O que faz com que uma obra ocupe espaço destacado na cultura é a sua capacidade de permitir, de forma eficaz, uma identificação do leitor com o herói ou heroína da trama. A identificação é, como disse Freud, uma das formas que o homem encontra para representar um laço afetivo com outra pessoa, e uma das formas que o ego utiliza para atender ao desejo pulsional. A paixão imediata de Goethe (s/d), ao ler Shakespeare, exemplifica o quanto um texto pode produzir na alma do leitor:
A participação, como espectador ou leitor, de uma peça tem o mesmo sentido para o adulto que tem para a criança o brincar, apesar de Freud ter lembrado que a criança é muito mais espontânea ao apresentar as suas brincadeiras que o adulto as suas fantasias. Todo ser humano aspira ser um herói; sentir, viver, agir somente de acordo com seus desejos. "O teatrólogo e o ator permitem-lhe que ele proceda dessa forma fazendo-o identificar-se com um herói" (Freud, 1942 [1905/06], p. 321). Ele pode dar vazão de modo ilimitado aos seus desejos: "são desejos ambiciosos, que se destinam a elevar a personalidade do sujeito, ou são desejos eróticos" (Freud, 1908 [1907], p. 152).
Desde Aristóteles "a finalidade do teatro é 'despertar o terror e a piedade' e assim 'purgar as emoções'" (Freud, 1942 [1905/06], p. 321). Goethe assim traduziu, magistralmente, uma passagem de Aristóteles, a respeito da tarefa que realizava a tragédia, para o espectador:
A arte é uma forma que a cultura oferece ao homem de experimentar certas emoções, através da identificação com o herói. Como dizia Freud (1908 [1907]), o escritor suaviza suas fantasias egoístas por meio de disfarces, bem como, através da estética, nos suborna na apresentação de seu texto. Foi isso que ele denominou de "prêmio de estímulo" ou de "prazer preliminar", um prazer preparatório de uma liberação prazerosa ainda maior, oriunda "de fontes psíquicas mais profundas", e conclui:
Na criação do seu herói, o autor identificado a ele goza do prazer quase divino de dar rumo, tanto de forma consciente como inconsciente, ao percurso que constrói para o personagem. Identificados aos personagens, não só participam fantasiosamente das cenas, como podem modificá-las imaginariamente e com a certeza da ausência de crítica do outro. Um dramaturgo, ao possibilitar que um leitor possa investir libidinalmente no herói do seu texto, participar do sofrimento e das alegrias desse herói, traz-lhe uma quantidade expressiva de prazer, bem como faz com que se atenue o desconforto desse leitor frente aos desígnios do destino.
Como percebeu Freud, todo escritor está frente a seus escritos da mesma forma que o comum mortal perante seus pensamentos e ações. Cria seus textos sem ter conhecimento do percurso e das forças que entram na sua criação e não nota a intencionalidade do desejo presente no ato da escritura, mesmo que, conscientemente tente explicá-lo: freqüentemente não é um bom intérprete de si mesmo e é o menos capacitado para informar sobre os fatos desencadeadores do seu processo literário. São os personagens de um drama psicológico, não o autor, como afirma Freud (1942 [1905/06]), os que mais possibilitam ao leitor, ou espectador, a identificação com o herói. Esta identificação tanto maior será quanto mais ambígua for a situação, ou seja, quanto maior for o conflito. É nesta ambigüidade que o autor pode dar maior relevo à obra, através da retórica e da argumentação, provocando não só um efeito catártico, como uma acentuação do reprimido.
A linguagem
Todas as estruturas de sublimação (religião, ciência e arte) nos confrontam com a questão da linguagem, que foi percebida por Bakhtin (1959-61) quando afirma: "A língua, a palavra, são quase tudo na vida do homem" (p. 346). Nesta acepção, a linguagem não é redutível a um mero instrumento de comunicação, mas valoriza toda a produção cultural, que se dá no simbólico, possibilitando assim a interpretação que busca um sentido entre enunciado e enunciação. Aí, se abre um espaço para a interseção entre literatura e psicanálise, até porque, continuando com o pensamento de Bakhtin (1952-53): "Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua" (p. 279). É a valorização de uma linguagem que se pretende libertadora, transformadora, aberta a múltiplas interpretações, e que vai muito além do discurso linear da consciência. Essa palavra subversiva mostra a linguagem como central na obra freudiana e associa a psicanálise ao pensamento crítico e ao sujeito da dúvida, um sujeito dividido entre eu penso e eu duvido, não se recusando (a psicanálise) à ambigüidade, à dúvida e à contradição.
Quando o autor cria, sua criação está no objeto ao qual deu forma. Ele só vê "o produto em devir de seu ato criador e não o processo psicológico interno que preside a esse ato" (Bakhtin, 1920-30, p. 27). A criação, enquanto movimento, só pode ser vivida, contudo, o ato criativo não é passível de apreensão em si mesmo, daí o autor pouco poder dizer sobre o seu processo criativo: "ele só pode nos remeter a sua obra; e é, de fato, apenas nela que vamos procurá-lo" (p. 27). É a verdade da incompletude do ser que a psicanálise descobre na literatura, impossibilitando uma relação de adequação entre as palavras e as coisas, mostrando a impossibilidade de uma perfeita correspondência entre a linguagem e a realidade da qual fala. É esse outro saber que o autor criativo pode apresentar, saber que aparece através das fantasias, da poesia e dos romances e que pode ser interpretado como uma verdade sempre parcial, associada ao desejo em permanente deslocamento metonímico através de objetos substitutivos.
Ainda segundo Bakhtin (1974), um autor criativo como Dostoiévski produz um contexto de sentido ao fazer com que as coisas que atuam mecanicamente sobre ele comecem a falar, ou seja, surja um ente pensante, falante, atuante e criador – "é a transmutação de coisa em sentido" (p. 407) que reúne a representação das coisas à representação das palavras. Esta transmutação aparece nos pensamentos e nos atos de seus principais personagens. O mesmo acontece com Shakespeare: a palavra do fantasma, da feiticeira, as emoções que entram em jogo no texto através dessas vozes são também apresentadas ao leitor, que poderá, através de um encontro dialógico com o texto criativo, dar algum sentido a sua história, percebida no texto dramático como alusiva às repetições inconscientes do que acontece a qualquer homem.
Podemos admitir que todo conhecimento científico se dê no campo da linguagem, de um sistema lingüístico referido a um universo simbólico, e que a principal propriedade da linguagem é a de constituir um sujeito. A psicanálise, enquanto uma prática teorizada, vem falar dessa linguagem do desejo inconsciente, que através do discurso do sujeito nos mostra uma verdade sempre relativizada em um campo intersubjetivo – que é também um campo de valores. Este contexto intersubjetivo, como diz Vital Brazil (1989), é um intertexto, pois permite o aparecimento de uma possibilidade interpretativa em um momento singular e criativo entre analista e analisando – entre curso associativo e atenção flutuante. E ao utilizar-se da interpretação, do uso operacional do conceito de inconsciente que nos indica o desconhecido incognoscível associado ao mal entendido do discurso e à polissemia da palavra, podemos aproximar psicanálise e literatura. Como assinalamos, é pela atividade interpretativa e pela questão da intersubjetividade que se pode fazer essa aproximação, pois a crítica literária também se utiliza da interpretação como prática da dúvida confrontada com a univocidade do sentido.
A linguagem do desejo inconsciente através da condensação metafórica e do deslocamento metonímico denuncia o movimento constante e permanente do psiquismo associado à linguagem e a um contexto social historicizado. É o deslizamento metonímico do significante sobre a barra do significado presente em todo e qualquer discurso, rompendo a ilusão da bi univocidade palavra-coisa, dividido entre conhecimento e desconhecimento e sempre associado à linguagem, que torna o significante não um representante puro e simples do significado, mas nesta correspondência instável com o significado ele é produtor de novas significações.
Conclusão
O texto criativo mantém um permanente desafio à psicanálise. Esta, como prática social, pretende, de alguma forma, interpretar, dar sentido à sempre errante linguagem do desejo inconsciente, fornecer alguma inteligibilidade ao que surge como absurdo, como irrepresentável, como um resto incognoscível que aponta, de forma perene, para o enigma do desejo inconsciente. Podemos dizer que a interpretação psicanalítica de um personagem da literatura é uma das muitas possibilidades que tem o intérprete de enriquecer o patrimônio cultural ao conseguir efeitos de sublimação. Os personagens criados por um autor são sempre representativos de um contexto cultural, situam-se entre fato e ficção, e também falam das repressões secundárias.
Apoiando-nos nas concepções de Vital Brazil sobre os personagens permanentes como representantes das matrizes da subjetividade, podemos dizer que a interpretação na psicanálise em extensão pode, através da significância do discurso poético, nos mostrar as matrizes de origem da cultura. Os heróis, se apresentados por um autor de forma criativa, serão universais quanto mais puderem condensar valores, denotar o complexo, o diferente e o plural, apresentando assim, as diferenças dos valores produzidos na cultura numa tentativa de condensação que visa atribuir algum sentido à história. Os personagens que ganham o caráter universalizante são aqueles que podemos chamar de personagens permanentes, que persistem ao longo da história, aos quais sempre podemos recorrer, utilizando a psicanálise para interpretar uma interpretação já dada anteriormente pela própria cultura. A produção nas artes está sempre ligada ao contexto sócio-histórico em que surge.
Utilizando-se do texto de Watt (1995, Myths of modern individualism) Vital Brazil mostra os impasses do desejo inconsciente em todas as culturas, representado através de personagens que se tornam permanentes por sua rica condensação metafórica, pois falam de uma história que todos já sabem. Quatro personagens – Fausto, Dom Quixote, Robinson Crusoé e Dom Juan Tenório – nos mostram a importância da realização simbólica num determinado contexto cultural que reúne valores. Fausto nos confronta com o desejo de onipotência; Dom Quixote, o cavaleiro de triste figura, nos coloca ante a impossibilidade da manutenção do ideal frente às exigências da realidade; Robinson Crusoé é condenado a viver na solidão e a encontrar através do outro selvagem alguma sensibilidade alteritária, em virtude do seu exacerbado narcisismo; Dom Juan Tenório apresenta o preço a ser pago pelos excessos da atividade desejante que pretendia romper com a metáfora paterna. Esses quatro personagens permanentes possibilitam uma infinidade de interpretações na medida em que não se pode apreender o enigma do desejo. Podemos, sempre, propor mais uma interpretação, procurando, através da psicanálise, dar algum sentido ao que surge num texto criativo, ao que pudemos apreender, já que sempre haverá um resto infinito a interpretar.
Ao pretendermos nos utilizar da literatura para fazer psicanálise em extensão, valorizamos o elo que surge entre o personagem e o contexto histórico-social em que ele foi criado. Visamos com isto encontrar possibilidades interpretativas que demonstrem o valor do personagem como referido a uma forma de ser num determinado contexto e passível de uma ampliação com pretensões de universalidade. Freud percebeu claramente o valor do mito para a cultura, bem como possibilitou que se captasse que determinados personagens não se situavam em um determinado tempo, mas poderiam ser representantes de qualquer tempo, isto é, teriam um caráter universal. O personagem na literatura sempre representa um modo de viver, representa a racionalidade e as formas que uma determinada cultura usa para resolver seu interminável conflito interno – sempre inflacionado, de forma intolerável, pela presença do outro. A qualidade da obra será maior ou menor a medida que este personagem se aproxime de ser um exemplo consistente do grupo social no qual está inserido. Com o passar do tempo, ele poderá se inscrever na grande temporalidade, como diz Bakhtin, ganhando então importância e caráter universalizante. A obra é a interpretação já realizada de um contexto social reunindo valores e indicando uma matriz de origem da própria cultura.
O valor profundo, universal e perene da lenda da Antigüidade clássica, Édipo Rei, só pôde ser aceito e compreendido porque toca, até hoje, de alguma forma, os conteúdos inconscientes do mundo do leitor ou espectador. Na Grécia, a obra de Sófocles tinha como finalidade primeira levar o homem a perceber sua impotência frente aos desígnios da vontade dos deuses. Freud (1900), todavia, utilizando-se dos conhecimentos da psicanálise, ampliou a importância da tragédia ao dizer que o interesse que as pessoas tiveram e, na atualidade, têm por Édipo não está num contraste de vontades, entre a dos deuses e a dos mortais. O que mobiliza os homens frente à obra sofocliana está "na natureza particular do material sobre o qual aquele contraste é exemplificado" (p. 278). Ou seja, o que comove, na verdade, o espectador ou leitor frente ao texto é o fato de que o destino do herói poderia ser o nosso, pois desde o nascimento estamos condenados, como o oráculo informou, não só a Laio como ao próprio Édipo, que nosso destino é desejar nossa mãe, como tirar do caminho nosso pai.
A tragédia grega impressiona porque fala de nossos desejos infantis e faz referência a uma das matrizes da nossa subjetividade, a mais arcaica de todas. Sófocles apenas menciona de forma disfarçada um desejo universal. Édipo é um personagem que condensa os nossos mais secretos impulsos e os valores sociais que condenam o incesto e o assassinato – impulsos que são mantidos em suspenso, reprimidos, mas que diante da peça são movimentados, apesar de muitas vezes não se tornarem claros para o próprio assistente.
Quando escreve suas peças teatrais, Sófocles propõe a punição ao ato de horror cometido, porque ele também está inserido no mesmo contexto social que seus espectadores. O seu ato nada mais é do que a explicitação, de forma condensada e disfarçada, de seus terríveis desejos repulsivos. Anteriormente afirmamos que todo e qualquer escritor que desconhece a psicanálise não percebe esses desejos em si mesmo, apesar de apresentá-los ao público. Ele também é acossado por esses desejos impuros. Entretanto, a sua escritura é sempre uma forma de dar sentido, ou melhor, de elaborar, sem sabê-lo, essa atividade do desejo inconsciente. Uma atividade comum a todos porque toca a todos.
Ao valorizar os sonhos, os mitos, o discurso como história e ficção, tornamos os personagens reais, eles ganham vida, principalmente os personagens trágicos, pois estes fornecem exemplos do que de mais representativo podemos interpretar como acontecendo, de forma inconsciente, a todos os homens. Quando a obra torna-se universal é porque pode condensar num personagem os valores mais significativos para a cultura. Um personagem se torna permanente, ao representar uma condensação que esquematiza a complexidade, a diferenciação e o múltiplo – que marca as diferenças com valores percebidos no contexto social. Esta condensação visa dar uma inteligibilidade à história através de uma interpretação informada pela psicanálise.
A possibilidade da interpretação, fornece uma realidade aos personagens e às imagens, exemplificando o que acontece, sob a égide do processo de repetição, a todos os homens que, em permanente conflito, tentam alguma compreensão para seus atos. Portanto, qualquer produção de arte, principalmente as que se inscrevem na rocha do tempo, pode presentificar o inconsciente, valorizando e justificando assim uma interpretação, ao indicar o lugar de cifração do inconsciente. Podemos admitir e reconhecer que toda produção artística é ilimitada, e que oferece inúmeras possibilidades interpretativas sobre a linguagem metafórica. Fazendo psicanálise em extensão podemos valorizar a sublimação, que a cultura nos mostra como uma renúncia às imposições pulsionais, assim como, através da interpretação do discurso poético, podemos mostrar a presença das fantasias que originam a plasticidade das inúmeras formas que o ser humano usa, para se apresentar frente aos demais. O discurso poético de um grande escritor é a forma disfarçada que ele utiliza para, não só se gratificar, mas, ao oferecer possibilidade identificatória ao leitor, fazê-lo reviver, na comunhão com o herói, sua angústia existencial. A escritura é em primeiro lugar, um ato narcísico, e em segundo, um ato de generosidade.
Notas:
[1] Em 1927, a cidade de Frankfurt criou o Prêmio Goethe, a ser oferecido anualmente a "uma personalidade de realizações já firmadas cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe". O valor do prêmio era de 10.000 marcos alemães (2.500 dólares).
[2] Em virtude da sua doença, um câncer no maxilar, foi representado por sua filha Anna Freud.
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WATT, Ian. Myths of modern individualism. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.
* Este texto encontra-se desenvolvido em Freitas, L. A. Freud e Machado de Assis: uma interseção entre psicanálise e literatura. Mauad, 2001.
Dizem que um autor deveria evitar qualquer contato com a psiquiatria e deixar aos médicos a descrição de estados mentais patológicos. A verdade, porém, é que o escritor verdadeiramente criativo jamais obedece a essa injunção. A descrição da mente humana é, na realidade, seu campo mais legítimo; desde tempos imemoriais ele tem sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica. Freud, Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen..
Goethe não teria rejeitado a psicanálise. (...) Ele próprio se aproximou numa série de pontos: identificou, através da sua própria compreensão interna, muita coisa que pudemos confirmar, e certas opiniões, que nos acarretam crítica e zombaria, foram por ele expostas como evidentes por si mesmas.
(p. 241-2).
...a psicobiografia de pensadores e artistas pode oferecer informações interessantes sobre a criação de suas obras, mas está longe de permitir a apreensão da significância que elas, a partir delas mesmas, constroem e instituem polifonicamente. Eis porque aquele reducionismo cientificista é, na verdade, duplo: reduz a obra de arte ao que pode ter condicionado seu surgimento, sem exaurir, porém sua poiésis; reduz a teoria freudiana a esquemas simplórios, mecânicos, unívocos, empobrecendo-lhe o alcance, banalizando e traindo seu complexo e delicado instrumental interpretativo. (p7-8)
A primeira página dele que li foi uma identificação por toda vida, e quando tinha terminado a primeira peça, fiquei como um cego de nascença a quem um gesto milagroso dá, num instante, a visão. Reconheci, senti vivamente a minha existência expandindo-se numa infinidade, tudo era novo, desconhecido, e a falta de costume com a luz me fazia doer os olhos. Lentamente fui aprendendo a ver, e, graças ao meu gênio de reconhecimento, sinto sempre mais viva- mente aquilo que ganhei (p. 27-8).
A tragédia é a imitação de uma ação significativa e completa, que possui uma extensão determinada e se apresenta com linguagem graciosa, por figuras diferenciadas que representam cada uma o seu papel, e não por um único narrador; no percurso de compaixão e medo ela completa a sua tarefa com a compensação de tais paixões (p. 16).
...a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha (p. 158).
É a identificação que, como dizia Freud, levava o homem a ficar encantado frente às obras da literatura mundial. Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski levam seus leitores a se identificarem (de forma histérica) com seus heróis. O leitor se reconhece nas paixões dos heróis e é através do jogo de identificações que ele se compraz e se alivia das suas angústias (Freitas, 1997, p. 175).
Os tesouros de sentido colocados por Shakespeare em sua obra foram elaborados e acumulados no correr dos séculos, e até dos milênios; estavam ocultos na língua – e não só na língua escrita, mas também naqueles estratos da língua popular que, antes de Shakespeare, não haviam penetrado na literatura -, ocultos na variedade dos gêneros e das formas da comunicação verbal, nas formas poderosas da cultura popular (sobretudo carnavalesca) que se moldava ao longo dos milênios, nos gêneros do espetáculo teatral (mistérios, farsas etc.), nos temas que remontam a Antigüidade pré-histórica, e, finalmente nas formas do pensamento. Shakespeare, como todo artista, construía sua obra a partir de formas carregadas de sentido, repletas desse sentido, e não a partir de elementos mortos, de tijolos prontos. Ademais, mesmo o tijolo possui sua forma espacial delimitada e, por conseguinte, expressa algo entre as mãos do construtor (Bakhtin, 1970, p. 365).
Freud (...) nos mostra que o personagem da obra poética, além de ser uma interpretação já realizada de um contexto cultural reunindo valores, pode também aparecer indicando uma 'matriz de origem' da própria cultura. E como existem personagens 'permanentes' que a criatividade da cultura nos lega como objetos culturais acabados, que persistem como exemplares além do movimento da cultura, personagens aos quais sempre voltamos, podemos dizer que esta busca interpretativa da psicanálise, procurando interpretar uma interpretação já dada pela cultura, é uma busca de uma genealogia que nos refere às matrizes subjetivas, à gênese do fato da significação numa série de intrincadas relações que implicam o sujeito que interpreta (Vital Brazil, 1992, p. 84-5).