top of page

A carta ao pai de Franz Kafka

 

José Durval Cavalcanti de Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Já no início da nossa vida psíquica, apreendemos que o rigor da realidade nos pressiona a lutar por uma ordenamento mais suave da sua composição. O ensino freudiano diz que o brincar infantil, uma expressão dos primeiros sinais de atividade imaginativa, anseia o "de-leite". O amadurecimento traz uma gradativa diminuição deste exercício até sua coagulação. Para a criança, o brincar e a realidade são distintos apesar de manterem um elo entre eles. O encerrar dos jogos infantis leva embora esta maneira de encontrar satisfação. O prazer desaparecido será de algum jeito reencontrado no fantasiar adulto, berço dos chamados devaneios. Mas, diferentemente da brincadeira que é explícita, a fantasia que surge mais tarde tende a ser escondida. O fantasiar é uma tentativa de corrigir uma insatisfação, ou ainda, uma realização de desejo da qual se prefere não falar. Já o brincar, objetiva igualmente uma satisfação com a diferença de que é claro, exibido. Provavelmente, deve ser esta a razão pela qual, vai nos dizer Freud, que temos mais fácil acesso às motivações do brinquedo infantil do que àquelas da fantasia adulta. A passagem da fantasia para um devaneio, implica num trabalho psíquico originado em motivação presente, determinando um forte desejo atual. Este, é remetido à uma lembrança passada para um momento em que este voto foi realizado. Cria-se aí uma prospecção para um futuro aonde o desejo se realizará (Freud,1908 [1907]).

 

    Do inventor da psicanálise, sabemos que o material utilizado pelo escritor é o mesmo que preenche nossas fantasias, sonhos e devaneios: é aquele que se encontra nas engrenagens do desejo a demandar realização. A seriedade de uma brincadeira dará o tom da criatividade do mesmo modo que o mundo fantástico do escritor aplicado é grávido de emoção. A nomeação dos objetos sensíveis nas formas literárias, tais como, a peça teatral, o ator, etc., aponta para a preservação determinada pela linguagem entre o brincar infantil e a criação poética. Tendo isto posto, podemos examinar o que tem de conforme entre um escrito e um devaneio.

 

    Certamente que um bom romance, drama, tragédia ou qualquer outro gênero de construção literária, situa-se longe de um devaneio ingênuo, encontrando-se nele o aspecto em que a criatividade de um escritor pôde construir com aquilo que emanou de uma busca de satisfação. Ou seja, originou-se da mesma fonte de onde brotaram suas fantasias.

 

    O objeto de nosso título, a carta que o escritor Franz Kafka (2004) escreveu ao pai, foi escolhido por se referir a um texto que em princípio não teria aspirações literárias, na medida em que se tratava de uma comunicação intensionando esclarecimentos, portadora de um endereço certo. Aqueles que comentaram este escrito observaram que a sua bem cuidada e grande letra em que foi redigido, e as poucas correções, apontavam para uma intenção efetiva de enviá-la ao pai.

 

    É um manuscrito de 1919, com cerca de cem páginas, em uma época em que a carreira literária do autor, que jamais obtivera grandes destaques, encontrava-se em ponto morto. É de se notar que suas obras mais conhecidas, que alcançaram um grande brilho póstumo, - "A metamorfose e O processo" – já se encontravam publicadas (Kafka, 2004, p. 7).

 

    Um dos grandes temas da obra de Kafka, a autoridade paterna, é por ele enfrentado neste documento, feito aos 36 anos de idade. De acordo com Walter Benjamin e Elias Canetti, estudiosos da obra kafkiana, é um texto, inegavelmente, autobiográfico.

 

    O escritor tcheco começa a "Carta" com uma impressionante declaração do quanto é possuído pelo medo de um pai, medo esse que "ultrapassa de longe sua memória e seu entendimento" (p. 18). Sua motivação declarada de escrever tal carta é de uma tentativa de aproximação com esta tão temida e formidável criatura. Seus argumentos são garimpados em um lugar situado além da capacidade de lembrança ou compreensão. Lugar aquele, lá aonde ele pensa e não é. O fio do desejo costura o texto, que desliza pelo olhar do leitor, num entrelace feito de passado, presente e futuro.

 

    As palavras movem-se no papel, dando relevo a um misto de frustração e nostalgia, referidas a um sentimento de inferioridade e a uma fragorosa barragem imposta pelo pai, que de acordo com este endereçamento manuscrito quase aborta o deslocamento do protagonista na direção do seu vir-a-ser. Este se encontra na carta, ora como sofredor passivo, ora como espectador ou ainda num torturante amálgama com este pai. Chama a atenção com que pertinência ao discurso psicanalítico refere-se à figura paterna, numa época em que a psicanálise alvorecia, confirmando o que Freud (1907 [1906]) dizia em seu artigo Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen do quanto os escritores criativos encontravam-se adiante da psicanálise no conhecimento da existência da subjetividade humana. O autor desta mensagem manuscrita, conta da entrada do Pai simbólico, que sustenta a substituição da coisa pela palavra, e de um pai real que se nega a assumir sua falta em relação à prática desta função, na sua recusa de sair do lugar do Pai-Deus. Kafka, com veemência, fala de uma desesperada procura por um caminho que lhe forneça as necessárias condições, um mínimo para se constituir, para poder passar sem o pai. Sai a descrever intensos sentimentos de fragilidade, inferioridade, fantasias incestuosas, hostilidade parricida, culpa e a presença de um pavor constante. Em sua viagem epistolar o autor, no momento em que escreve se diz "um homem débil, amedrontado, hesitante e inquieto" que espera alcançar, através desta carta, "algo próximo da verdade que possa tranqüilizar um pouco a ele e ao pai, tornando a vida e a morte mais fácil para ambos" (Kafka, 2004, p. 6). A intensidade de tal declaração nos faz pensar que o seu escrever não parte de um ato desesperado, mas, sim como a expressão de um profundo e constante desespero.

 

    Podemos considerar que Kafka em sua "Carta" não era movido por pretensões literárias. Queria ser ouvido pelo pai. Entrega a missiva a sua mãe que "com palavras bondosas ela a devolve" (p. 8). Porém ele vai ficando com a carta e, em comentários manuscritos, diz que é uma "carta de advogado" (ibidem), como de alguém que se defende em um tribunal, apresentando uma volumosa lista de erros cometidos pelo pai na sua educação. Porém, sabe-se que este manuscrito alcançou um alto valor estético enquanto documento literário. Valor este, que não se mostra a uma leitura superficial. A título de exemplo, evoquemos em continuidade a Derrida quando, na abertura do seu livro a Farmácia de Platão (1997), adverte que um texto só pode ser aceito como tal, se oculta ao primeiro olhar "a lei de sua composição e a regra de seu jogo" (p. 7). Ou seja, que tanto esta lei como esta regra não são rigorosamente perceptíveis a partir de uma simples apresentação. Para que um texto se dê a conhecer, há que se ir além de sua superfície. Tem que nele "meter as mãos" (ibidem) sem recuar da possibilidade, quando inevitável, de acrescentar um fio à sua textura. Acrescentar aqui, não é outra coisa do que ordinariamente se chama de fazer a leitura, ou seja, a contribuição daquele que lê. É a tentativa de enxergar aonde se produz o prazer de ler que movimenta este ensaio.

 

    Vamos partir da premissa de que as palavras do autor tecem um pano com fios autobiográficos. Ora, uma autobiografia pode ser uma compilação de informações sobre si mesmo de cunho prático ou histórico-científico. Podemos dizer com Bakhtin (2003) que aí não encontraremos qualquer propósito artístico-biográfico. Bem, a "Carta" apesar de um endereço certo e um objetivo explicitado é sem sombra de dúvida uma obra literária. Nesta, a partir de suas lembranças do passado, Kafka faz funcionar inúmeras vezes um outro cujas nuances idealizada recordam a ele mesmo. Ao contar sobre sua vida pela via do dizer como os outros são para ele, produz um entrelaçamento com a estrutura formal do que narra, situando-se no papel representado por um ator e ainda que não se ponha como herói de sua vida, toma parte dela. Quando aquele que conta toma para ele as formas de perceber os valores dos outros, termina por vestir a roupa do personagem. Nestes escritos biográficos, aquele que escreve vai tomando conhecimento da história da sua vida através das tintas emotivas que colorem as palavras dos que lhe são caros, quando revelam sua origem, infância, vida familiar e social. O que confere valor artístico à narrativa é a superação da palavra quando esta se transforma numa expressão de um mundo dos outros e na maneira do autor relacionar-se com este universo. Ainda com Bakhtin, nos permitimos a dizer que "o estilo artístico não trabalha com palavras, mas, com elementos do mundo, com valores do mundo e da vida" (p. 180). A propósito disto, W. Benjamim vai dizer que todos os livros do Kafka são "narrativas grávidas de uma moral que jamais dão à luz" (Kafka, 2004, p. 11).

 

    Passando à leitura do escrito, perguntamos por que esta sofrida queixa e os penosos sentimentos de uma profunda intimidade não causam uma repulsa, indiferença ou um insuportável mal-estar no leitor? A estes prováveis obstáculos para uma leitura, acrescentem-se aqueles do narrador enquanto intimidado ou envergonhado de expor suas entranhas desta maneira. Ainda porque, com o diz Freud (1908 [1907]), o que pode causar repulsa é a barreira entre o eu do escritor e o do leitor. O que vai se verificar é que a possibilidade do encontro narrador / leitor aconteça com a diminuição da distância entre os dois. Este movimento é provocado pela ação criativa do escritor incidindo sobre a intimidade poética daquele que o lê. Com esta aproximação, cria-se um espaço entre um e outro, como que levando a uma coabitação de linguagens, estabelecendo desta maneira, as condições de se experimentar o texto.

Como esta separação entre escritor e leitor se estreita, possibilitando que se ponha à prova a excelência de uma escrita?

Talvez pelo prazer destilado através de um humor peculiar como no caso de Kafka, que se dirige a um pai para que ele o leia. Aqui talvez seja bom lembrar que, para o escritor, este pai nada mais é que uma direção de suas associações cedida à pena que desliza sobre o papel. (Vaclav Jamek e Pierre Dumayet, 2002).

 

    Ou ainda, fazendo com que a tessitura da obra possa ganhar uma roupagem que suavize o caráter egoísta dos devaneios do escritor aos olhos do leitor. O primeiro, com isto, de certa maneira alicia o segundo na apresentação de suas fantasias, contemplando-o com um prazer estético (ou formal). Ou seja, encontramos aí, o humor e a sedução entre as manobras ou artifícios do verbo que visa à sutura do fosso entre o um e o outro.

    Barthes (1999) vai dizer que, sobre o prazer do texto, nenhuma "tese" é possível; apenas uma inspeção de que, contentamento, acaba depressa. E ainda, "... que o prazer do texto é irredutível a seu funcionamento gramatical, como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica" (p. 25). E que, a literatura tenta atingir – fazendo parecer que o leva a efeito de uma maneira sensata - o inatingível real. Continuando com Barthes podemos enunciar que o prazer procura o lugar de uma perda, a ser expresso numa vertigem que se apodera do sujeito no íntimo da sua fruição. É na enunciação e não no seguimento dos enunciados que vai surgir a falha do gozo e posse. Escrevendo de um outro jeito: o prazer do texto, se encarna na fugacidade desse momento pleno da sensatez de um desejo do impossível, obstinação da escritura que toma conta da dupla: narrador / leitor.

 

    Este "premio de estímulo ou prazer preliminar" como nomeou Freud (1908 [1907], p. 158), é o que leva ao gesto de virar a página a fim de reencontrar a satisfação que se esvanece.

 

    O inventor da psicanálise aponta ainda que o contentamento do ato de leitura possa ser decorrente do desmantelo das tensões. Tensões estas provocadas por angústias ligadas àquelas fantasias do leitor, assemelhadas à do escritor. Pode-se acrescentar inclusive, que este efeito não seria obtido a partir da leitura de uma carta simplória, feita de um rol de queixas e pedidos de explicações. Mas sim, numa obra literária, aonde a satisfação é o próprio efeito da arte poética operando.

 

Referências bibliográficas:

 

BAKTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2003.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo, Perspectiva, 1999.

_______ Aula. São Paulo, Cultrix, 2004.

DERMAYET,Pierre. Porquoi il faut lire Kafka In Magazinne littéraire. Paris, dec. 2002, n. 415.

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo, Iluminuras, 1997.

FREUD, Sigmund (1908 [1907]). Escritores criativos e devaneio. Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1976, v. IX.

_______ (1907 [1906]) Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro, Imago, 1976, v. IX.

JAMEK, Vaclav. Les paradoxes de l'humour. In Magazinne littéraire, Paris, dec. 2002, n. 415.

KAFKA, Franz. Carta ao Pai. Porto Alegre, L&PM, 2004.

...os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita freqüência de que todos, no íntimo somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta. Freud, Escritores criativos e devaneio.

  • facebook
  • Twitter Round
bottom of page