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Lendo Sófocles com Lacan

2012-2015

 

Antígona de Sófocles em paralelo ao comentário de Lacan no Seminário VII
 

- A ética da psicanálise (resumo, comentários e notas)

 

Sandra Edler

 

 

 

    A tragédia, um gênero literário original, surge em Atenas, no fim do século VI a.C., nascida do culto a Dionísio. Aparece em sucessão à epopéia, à poesia lírica e precede a constituição da filosofia. O apagamento da tragédia coincide com o momento em que a filosofia triunfa. A tragédia grega não se coloca apenas como obra de arte. Tornou-se uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e jurídicos. "A cidade se faz teatro. Ela se toma como objeto de representação e desempenha a si própria diante do público"

(Vernant e Vidal-Naquet, 1999, p. 10).

 

    De um lado, o coro, personagem coletiva e anônima encarnada por um colegiado de cidadãos cujo papel é exprimir o sentimento do grupo (cidadãos e expectadores). Do outro, o herói trágico, o ator cujo desempenho vai situar o âmago da questão a ser discutida dentro de um contexto tenso que opõe passado e presente, tradição e inovação, mito e cidade. A tragédia tem como objeto o homem internamente dividido e que precisa escolher uma posição num universo de valores que não mostra, de forma clara, o que deve ser feito. E o sentido trágico aponta, cada vez mais, a responsabilidade do homem frente àquilo que lhe acontece.

 

    Qual é enfim o lugar desse homem num universo social, ambíguo, dilacerado por contradições, onde nenhuma regra aparece como definitivamente estabelecida, (...), onde a justiça se desloca, gira sobre si mesma e se transforma em seu contrário? (p. 10).

 

    Ética é o juízo sobre um ato. Hoje, num mundo exposto a rápidas mudanças, diante de valores em vertiginosa mutação, não estamos tão distantes assim dos gregos na jovem democracia ateniense do século V a.C. e a leitura do Seminário VII, A ética da psicanálise (1959/1960), cinquenta e quatro anos depois de proferido por Lacan, mostra-se fértil e estimulante para, nele, destacarmos questões com as quais nos confrontamos, na atualidade.

 

    Sempre que articulamos a psicanálise à tragédia, como fizeram Freud e Lacan, encontramos inúmeros pontos de encontro, conexões e formas de ilustrar questões como o lugar do sujeito, o pathos1, a paixão, a desmesura, a hybris2, a transgressão. No corpo da tragédia encontramos o espaço do espanto, da interrogação, da dúvida, da dor, da solidão e da morte. E, sobretudo, a idéia cara à psicanálise, de que a vida não nos dá tréguas e não nos oferece a perspectiva da conciliação. A tragédia destaca a nós, psicanalistas, o aspecto pulsional, o excesso com o qual convivemos e do qual temos que dar conta. O excesso que os gregos chamavam de desmesura. Tragédia é estar vivo e ter que fazer algo com esse excesso que não deixa de nos açoitar.

 

    O texto de Édipo Rei, de Sófocles, é emblemático à cultura ocidental e à psicanálise. Édipo é um herói que humaniza, que expõe as entranhas da condição humana e, pode-se dizer, funda um Grande Outro como pano de fundo a partir do qual podemos pensar questões relativas ao enigma de nossa origem e ao âmago do desejo em sua vertente incestuosa e parricida. "É o herói patronímico do Complexo de Édipo (...). Ele próprio não é nada senão a passagem do mito à existência" (Lacan, 1992, p. 288).

 

    A ética da psicanálise é uma ética trágica. No entanto, é importante situar que, no universo antigo, o sujeito como o definimos não estava ainda delimitado. O sujeito tem estatuto moderno. O sujeito, pensado em termos psicanalíticos, é herdeiro do sujeito da ciência e mantém "essa relação com o saber que, de seu momento historicamente natural, preserva o nome de cogito" (Lacan, 1998, p. 872). Como observa Vorsatz (2013), "é aquele que advém da démarche cartesiana conhecida como cogito" (p. 12). Feita a ressalva, vamos começar o comentário sobre Antígona.

 

    Antígona foi encenada em 441 a.C. em Atenas, onze anos antes de Édipo Rei. O corpo da tragédia consiste na sequência do mito da família dos Labdácidas. A maldição atingiu a família de Lábdaco, rei de Tebas, quando seu filho Laio raptou Crisipo mantendo com ele relações amorosas. Quando Laio casou-se com Jocasta, dirigiu-se ao oráculo de Apolo para perguntar se a união seria fecunda. "Se de Laio e Jocasta nascer um filho, ele matará o próprio pai e casar-se-á com a própria mãe", respondeu a pitonisa (Brandão, 1984, p. 50). A profecia se realizou integralmente. Os quatro filhos de Édipo e Jocasta estavam, portanto, de antemão, condenados. Quando ocorreu a morte dos pais ficaram sob a tutela de Creonte, irmão de Jocasta. Ao completarem a maioridade, Etéocles e Polinice, segundo acordo prévio, decidiram reinar alternadamente por um ano cada. Etéocles, no entanto, findo o primeiro ano de reinado, recusou-se a entregar o cargo ao irmão. Diante disso, Polinice uniu-se ao sogro Adrasto e marchou contra Tebas na famosa expedição dos "Sete contra Tebas" que mereceu, com este mesmo título, uma famosa tragédia de Ésquilo (Brandão). Os dois irmãos morreram um nas mãos do outro. Creonte, como parente mais próximo, assumiu o poder. Pela lei da Cidade, um dos irmãos é considerado herói e o outro, inimigo. Creonte decretou funerais suntuosos para Etéocles e proibiu, sob pena de morte, que se desse sepultura a Polinice, considerado inimigo da Pátria.

 

    Nesse ponto, a tragédia de Sófocles tem início. Etéocles e Polinice já cumpriram a maldição familiar pela hamartía do guénos3. Agora é a vez de Antígona. Sófocles, no entanto, é muito diferente de Ésquilo. Em seu teatro antropocêntrico, "o homem, o herói é concausante do destino: este atua, mas o homem concorre para que esse destino se realize" (p. 51). Antígona tomou sua resolução: mesmo tendo conhecimento do edital proibitório de Creonte, decidiu dar sepultura a Polinice. Ainda que reconheça o irmão como criminoso, quer dar-lhe sepultura também. No seu propósito, Antígona é Omos4, inflexível (Lacan, 2008). Visa, em seu desejo, ir além da lei dos homens. Antígona se opôs ao Kérigma5, ao mandamento de Creonte e, para o Coro, ela foi buscar a sua Até6, transpôs o seu limite.

 

A peça começa com o diálogo entre Antígona e Ismene. Antígona dá ciência à irmã de sua decisão.

 

Antígona − Decide se me ajudarás em meu esforço

Ismene – Teria eu poderes para te ajudar a desfazer ou a fazer alguma coisa?

Antígona − Ele é teu irmão e meu; e quanto a mim, jamais o trairei

Ismene – Atreves-te a enfrentar as ordens de Creonte?

Antígona− Ele não pode impor que eu abandone os meus. (...) não deixarei sem sepultura o meu irmão muito querido" (Sófocles, 1989, p. 198-0).

 

    Creonte vem ilustrar uma função na estrutura trágica: ele quer o bem, o que é, afinal, o seu papel. O chefe é o que conduz a comunidade. É o responsável pela lei e a ordem. "Ele está aí para o bem de todos" (Lacan, 2008 p. 306). Qual é a sua falta? "Aristóteles nos diz, hamartía, o erro de julgamento". No comentário de Lacan (p. 306) observa-se a ressalva de que um século separa a época da grande criação trágica de sua interpretação no pensamento filosófico. Quanto a Creonte seu erro de julgamento é querer fazer o bem de todos ignorando as leis não escritas, as leis ctônicas, o campo da Dike7, a vontade ou a justiça divinas. "É sobre outro campo que Creonte, como um inocente, transborda" (p. 306).

 

    A interdição de Creonte que concerne à recusa de sepultura a Polinice é fundada no fato de que não se pode igualmente honrar os que defenderam a pátria e os que a atacaram. No entanto, observa Lacan: "o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso de cujas consequências nos adverte a tragédia" (p. 306).

 

Creonte – Mandei comunicar ao povo (...)

 

Que Etéocles, morto lutando pela pátria,

 

Desça cercado de honras marciais ao túmulo

 

E leve para seu repouso eterno tudo

 

Que só aos mortos mais ilustres se oferece;

 

Mas ao irmão, quero dizer, a Polinice,

 

Que regressou do exílio para incendiar

 

A terra de seus pais e até os santuários

 

Dos deuses venerados (...).

 

Que cidadão algum se atreva a distingui-lo

 

Com ritos fúnebres ou comiseração;

 

Fique insepulto seu cadáver e o devorem (Sófocles, p. 204).

 

    Ao anoitecer, Antígona foi recobrir o corpo do irmão com uma fina camada de poeira para que ficasse discretamente velado à vista. Um mensageiro corre a avisar Creonte que toma providências para que o autor seja rapidamente descoberto e, mais ainda, para que se cumpra a lei: totalmente insepulto deve ser mantido o corpo de Polinice.

 

    Creonte (ao Corifeu) – Sede implacáveis com os rebeldes ao edito (Sófocles, p. 205).

 

    Antígona é encontrada e levada à presença de Creonte. Segue-se o diálogo entre os dois. As posições estão tomadas e não há conciliação possível.

 

Antígona – (...) Eu já sabia que teria que morrer (e como não?)

 

Antes até de o proclamares,

 

Mas se me leva à morte prematuramente,

 

Digo que para mim só há vantagem nisso.

 

Assim cercada de infortúnios como vivo,

 

A morte não seria então uma vantagem?

 

Creonte − (dirigindo-se ao Coro)

 

Ela já se atrevera, antes, a insolências

 

Ao transgredir as leis apregoadas;

 

Hoje pela segunda vez revela-se insolente:

 

Ufana-se do feito e mostra-se exultante!

 

Pois homem não serei – ela será o homem!

 

Se essa vitória lhe couber sem punição (...).

 

Creonte − Além do mais odeio quem, pilhado em falta

 

Procura dar ao crime laivos de heroísmo (p. 216).

 

    Um longo diálogo se desenvolve entre Creonte e Antígona. Antígona enterrou o irmão Polinice em confronto aberto ao edital proibitório de Creonte. Dialoga com Creonte e com a irmã Ismene chamada à cena. Nesse momento não demonstra nem temor diante de Creonte nem piedade diante de Ismene, disposta a morrer com ela. Não admite a companhia da irmã:

 

    Antígona – Os mortos sabem quem agiu, e o deus dos mortos;

 

    Não quero amiga que ama apenas em palavras "(p. 219).

 

    As duas irmãs saem levadas pelos guardas.

 

    Creonte dirige um longo discurso ao Coro. E, em seguida, vem ao seu encontro o filho Háimon (ou Hêmon). O rapaz, noivo de Antígona, dialoga com o pai. Tenta argumentar, demovê-lo da posição radical em que se encontra. Ele traz a palavra dos moradores da Cidade. Muitos exaltam o feito de Antígona que arriscou a vida para dar sepultura ao irmão. Mas ouve do pai que tem um caráter sórdido e é submisso a uma mulher. Creonte mantém-se insensível aos argumentos e mesmo às ameaças do filho e decreta a pena de Antígona: ela foi condenada ao suplício de ser enterrada viva numa tumba. Creonte, diante do Corifeu, detalha de que maneira a morte deverá vir ao seu encontro:

 

Creonte – Levando-a por deserta estrada hei de enterrá-la

 

Numa caverna perigosa, ainda viva,

 

Deixando tanto alimento quanto baste

 

Para evitar um sacrilégio; não desejo

 

Ver a cidade maculada. Lá em prece

 

Ao deus dos mortos – único que ela venera –

 

Talvez obtenha a graça de não perecer,

 

Ou finalmente aprenderá, embora tarde,

 

Que cultuar os mortos é labor perdido (p. 230).

 

    Nesse momento, comenta Lacan (p. 316), "o Coro diz literalmente, esta história nos deixa loucos, largamos tudo, perdemos a cabeça por esta menina, estamos apossados de Imeros Enarges"8. Imeros é o mesmo termo usado em Fedra, observa Lacan (2008). A miragem, o reflexo do desejo tornado visível: "tal é o que aparece no momento em que vai se desenrolar a longa cena da subida ao suplício" (p. 317). Por um momento Antígona dirige-se ao povo de Tebas:

 

Antígona – Concidadãos de minha pátria, vede-me

 

Subindo o meu caminho derradeiro,

 

Olhando o último clarão do sol,

 

Que nunca, nunca mais contemplarei.

 

O deus dos mortos, que adormece a todos,

 

Leva-me viva para os seus domínios

 

Sem que alguém cante o himeneu por mim,

 

Sem que na alcova nupcial me acolha

 

Um hino; caso-me com o negro inferno.

 

Coro - Ela era deusa, nascida dos deuses,

 

E nós, mortais, nascidos de mortais.

 

Será, porém, honroso para ti,

 

Que agora chegas ao momento extremo,

 

Dizerem que o destino te igualou

 

Aos deuses, viva e mesmo após a morte (p. 232).

 

    A chegada de Tirésias promove uma reviravolta em cena. O velho profeta argumenta com Creonte. Todo homem pode errar, mas não é sensato persistir no erro. A intransigência leva à estupidez. Matar de novo um morto é prova de coragem? Nada de bom virá para Tebas em decorrência dessa voz, única e tirânica. Creonte hesita, dirige-se ao Coro. Diz o Corifeu:

 

Vai à caverna subterrânea e solta a moça.

 

Para o cadáver insepulto, faze um túmulo (p. 241-2).

 

    Antígona morre, mas com seu ato, chama a atenção para o registro em que se encontra Creonte, o campo dos bens. Mostra ainda que seu kérygma, o mandamento em forma de edital, é desmedido e abusivo e que um homem que passou pela cultura, não pode terminar como um cão vadio. A sepultura e o nome na lápide testemunham essa passagem e ao descumprir esse singular preceito, Creonte ofende não apenas Polinice, mas todos os homens em sua humanidade. Comenta Lacan (2008):

 

    O fato de que foi o homem quem inventou a sepultura é discretamente evocado de passagem. Não se pode acabar com seus restos esquecendo que o registro do ser daquele que pôde ser situado por um nome deve ser preservado pelo ato dos funerais (p. 329).

Não se pode negar ao homem o registro de sua passagem no campo da linguagem: "a linguagem escande tudo o que ocorre no movimento da vida", conclui Lacan (p. 330).

 

    Em contraponto a Creonte que representa o campo dos bens, Antígona, a heroína da tragédia, ilustra o campo do desejo, a aproximação entre o desejo e o ato expondo ainda a condição de ausência de garantias e o risco que corre o sujeito quando se posiciona nesse registro. Como observa Vorsatz:

 

    A ética da psicanálise implica uma condição trágica segundo a qual o sujeito deve transpor o limiar do bem a fim de garantir, em ato, o campo do desejo (p. 73).

 

    O sujeito, embora não seja senhor em sua própria casa, vale dizer, não controla o próprio destino, deve responsabilizar-se por ele. A aproximação entre o herói trágico e o sujeito se dá na medida em que, diante do desamparo constitutivo e da solidão, ambos precisam engajar-se num ato sem o amparo do saber − como tão bem ilustra Sófocles em sua Ode ao Homem9. (Sófocles, p. 210).

 

 

Notas:

 

1. Pathos: o que causa surpresa, o inesperado; prefixo de onde se origina a palavra paixão (Mello, DM. A face oculta do amor − a tragédia à luz da psicanálise, Imago, 2001).

 

2. Hybris: descomedimento, ultrapassamento do métron, para os gregos, a medida de todas as coisas. Algo imperdoável, pois os deuses não admitiam qualquer competição por parte dos mortais (Brandão, 1987, p. 298).

 

3. Hamartía do guénos: Hamartía, erro de julgamento (ou ainda, engano trágico). Guénos, pessoas ligadas pelo mesmo laço de sangue. Qualquer hamartía, erro ou crime cometido por um guénos contra outro teria que ser necessariamente vingado (Brandão, 1984, p. 37).

4. Omos: inflexível (algo de não civilizado, de cru); autonomos: aquele que só obedece a sua própria lei (Lacan, 1959/1960/2008, p. 311).

 

5. Kérygma: mandamento, ordem, proibição.

 

 

Referências:

 

BRANDÃO, J. Teatro Grego tragédia e Comédia. Petrópolis, Vozes, 1984.

________, J. Mitologia grega. Petrópolis, Vozes, 1987, v. II.

LACAN, J. A Ciência e a verdade. IN: ESCRITOS. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.

_______ O Seminário, livro II, O eu na teoria do eu e na técnica da psicanálise (1954/1955). Rio de Janeiro, Zahar, 1992.

_______ O Seminário, livro VII, A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro, Zahar, 2008.

MAURANO, DM. A face oculta do amor. A tragédia à luz da psicanálise, Rio de Janeiro, Imago, 2001.

SÓFOCLES. A trilogia tebana (tradução Mario da Gama Kury). Rio de Janeiro, Zahar, 1989.

VERNANT, JP. e VITAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia antiga. S. Paulo, Perspectiva, 2008.

VORSATZ, I. Antígona e a ética trágica da psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

 

 

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