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A escrita melancólica de Clarice

 

Sandra Edler

 

Texto elaborado durante a realização do Seminário Revisitando Luto e melancolia 100 anos depois (SPID/agosto a outubro/2014).

 

 

 

 

 

 

 

 

     Reler Luto e melancolia (Freud, 1915[1917]) às vésperas do centenário de sua escrita nos propõe uma curiosa viagem no tempo na qual noções e conceitos desenvolvidos ao longo da construção da psicanálise se reencontram com concepções apenas esboçadas. Sabemos que o interesse de Freud pela melancolia remonta aos primórdios de seu percurso e, quando redigiu Luto e melancolia, não dispunha de conceitos fundamentais para abordá-la como a pulsão de morte e a redefinição do superego, além da postulação do masoquismo como originário. O Seminário Revisitando Luto e melancolia 100 anos depois, desenvolvido durante os meses de agosto a outubro/2014, contemplou esse trajeto arqueológico, visitando os conceitos definidos a partir da Segunda Tópica e da Segunda Teoria Pulsional, com vistas a ampliar e enriquecer o texto de 1915, permitindo uma abordagem aprofundada e atual da melancolia.

 

     Nesse momento, para introduzir a articulação com a escrita, valorizamos um comentário de Kehl (2011) no qual a autora define “o melancólico como um sujeito que teria perdido seu lugar no laço social e sente necessidade de reinventar-se no campo da linguagem” (p.26-27).

 

     O melancólico, como sugere Lambotte (1997), assemelha-se a um exilado, distante, isolado do mundo e  desinteressado dele: algo ao qual não pertence e com o qual não há sentido envolver-se. Alguns melancólicos inclusive,  buscam alívio na solidão voluntária – o afastamento radical do outro. Habitam um estado de luto não elaborado sem visibilidade de sua origem e do objeto perdido. Devido à precoce identificação narcisista, um momento pré edípico, a relação com o objeto se dá numa equivalência entre o amar e o devorar. E o ego atua em bases muito vulneráveis recorrendo facilmente à regressão ao narcisismo propriamente dito. Assim, a condição mais constante é a proximidade à perda e o adentrar à região sem sentido que a antecede. Daí a relação à escrita. Como pontua Lacan (1953[1978]), “o símbolo se manifesta primeiro como assassínio da coisa...” (p.184). É essa primeira morte que nos permite atingir o universo da palavra.

 

     Observamos características do discurso melancólico como a desconstrução do sentido, o esvaziamento do significado e a busca do efeito sonoro das palavras. Uma escrita produzida à beira do não sentido sugerindo o pulsar da letra, uma escrita peculiar de borda, na estreita fronteira entre o simbólico e o real. Chamando a atenção para a diferença entre a fala e a escrita, Lacan (1975) observa que, “quando se escreve, pode-se muito bem tocar o real (...) (p.78).

 

     Encontramos ressonâncias dessa escrita na obra de Clarice Lispector, sobretudo nos dois últimos trabalhos, A hora da estrela (Lispector, 1998) e Um sopro de vida (Lispector, 1999), realizados simultaneamente em seu último ano de vida. A hora da estrela aborda a história de uma nordestina exilada e sem lugar, falando talvez de uma existência anônima e desde o início sem saída. A dor e a exclusão de uma personagem que apenas sobrevive. Com a nordestina Macabéa, Clarice ilustra o sujeito numa condição de solidão e absoluto desamparo. Distante das referências alagoanas e sem família, Macabéa vem para o Rio de Janeiro onde se instala num quarto miserável no centro de cidade. Consegue o emprego de datilógrafa e ocupa o tempo ouvindo a rádio relógio. A hora da estrela é a hora de sua morte. Nas palavras de Clarice, “ali deitada – teve uma úmida felicidade suprema pois ela nascera para o abraço da morte, A morte que é nesta história o meu personagem predileto” (1998, p.84).

 

     Em Um sopro de vida (1999), Clarice deixa correr solta a pena, usando a palavra para além do ponto pleno de sentido à beira do não sentido. “Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra” (1999, p.14). “Dizer palavras sem sentido é minha grande liberdade” (p.95)

 

     A Paixão segundo GH (Lispector, 2009) marca o momento em que a obra de Clarice deixa o campo da ficção para aderir a um novo estilo mais próximo ao monólogo interior, o fluxo de pensamento (Gotlib, 1995) ou a associação livre, diríamos. Ela deixa a estrutura do romance para escrever com maior liberdade o que lhe vem à cabeça, em suas palavras, o que está atrás do pensamento. A leitura da obra torna-se talvez mais difícil mas ilustra, de forma singular, o fluir da palavra no extremo do simbólico, último limite e vizinhança ao real. Além disso, seu texto é entremeado por comentários sobre a relação com as palavras, de como fazem parte de sua vida desde a infância quando decidiu que seria uma escritora. Mostra-se, a todo momento, atravessada pela consciência da finitude, a proximidade com a morte e a vulnerabilidade da vida ao sem sentido:

 

      “Eu escrevo para fazer existir e para existir-me. Desde criança procuro o sopro da palavra que dá vida aos sussuros” (p. 97).

 

     “Ao escrever não penso nem no leitor nem em mim: nessa hora sou as palavras propriamente ditas”(p.95). “Eu não existiria se não houvesse palavras” (p.83)

 

     Freud (1930) já havia observado a afinidade entre a escrita e a condição da perda “a escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente” (1974, p.111). Essa proximidade entre a escrita − registro de algo que se perdeu – e a melancolia abre, − a nós analistas, a possibilidade de desvelar parte dessa subjetividade obscura e inquietante que perseguimos desde a Antiguidade quando foi nomeada como efeito da bile negra na Teoria dos humores (Edler, 2008). E, do ponto de vista da abordagem analítica, pode abrir ao melancólico uma possibilidade de reinvenção tornando possível algum enlaçamento. Clarice seguiu tentando:

 

     “Cada livro é sangue, é pus, é excremento, é coração retalhado, é nervos fragmentados, é choque elétrico, é sangue coagulado escorrendo como lava fervendo pela montanha abaixo” (1999, p. 90).

 

      Criar pode ser uma saída para o sintoma, aquilo de mais íntimo e  pessoal no sujeito. A criação, a invenção, “o trazer algo à luz lá onde antes não havia nada” (Soler, 1998) pode ser um caminho, uma possibilidade dentro da nossa “incurável” condição humana. E desde já podemos recortar um elemento comum entre sintoma e criação: a marca do estilo. “Todo sintoma”,− observa Soler (1998, Op.cit.) – “é uma ofensa ao sentido, mais precisamente ao sentido comum” (p. 94). O sintoma freudiano se apresenta como uma solução particular frente ao conflito de forças e implica também uma satisfação substitutiva e inadequada, um modo de gozo como nomeou Lacan (1959/1960). Esse modo de gozar é inerente à estrutura do sujeito, um excesso fora da simbolização e, como irá redefinir em 1975 (O Sinthoma), “a forma como cada um goza de seu inconsciente na medida em que o inconsciente o determina” (1975, p. ). Algo que resta impregnado ao sujeito.

 

     “Eu não escrevo por querer, não. Eu escrevo porque preciso. Senão o que fazer de mim?” (p. 71)

 

     “Eu vou me acumulando, me acumulando – até que não caibo em mim e estouro em palavras” (p. 71).

 

     Observa Lambotte (1997, p.506), “o sujeito melancólico é agido a seu despeito pelo movimento de esvaziamento que o faz escavar o próprio vazio”. À margem da vida, acentua a distância por desinvestimento e desinteresse. Lambotte (1997, Op.cit.) usa o significante “desafetado” para explicitar “o mecanismo de repulsão que, no temor da catástrofe, condena o sujeito a ignorar a realidade privando-a de todo afeto, desafetando-a por assim dizer (...)” (p.506) e identificando-se ao nada. Essa desafetação é também uma expulsão de si mesmo. Ele desiste de procurar no campo do desejo − por mais que, eventualmente, portas se abram, por mais que pessoas a sua volta se surpreendam. Ele desfaz oportunidades, certo de que pode ver adiante e que, dentro dessa perspectiva, não vai adiantar, nada vai mudar.

 

     A arte, de uma maneira geral é um trabalho em torno do vazio. Como Lacan (1959/60) inúmeras vezes destaca,  “toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do vazio.”( p.158). A escrita, como arte, já é nesse sentido, litoral, mas a escrita melancólica teria, a nosso ver, a característica de bordejar a dor de existir e de trilhar esse deserto que é viver quando as máscaras do desejo, por um motivo ou outro, caíram e o viver tornou-se apenas o existir. O passo a passo na aridez cotidiana. Despida do desejo, a vida se converte apenas numa sequencia de dias em direção à morte. Dias sem cor e sem graça. O sujeito à mercê do que lhe acontece despojado de seu principal combustível. Clarice parece confirmar essa idéia:

 

     “O deserto é um modo de ser. É um estado-coisa. De dia é tórrido e sem nenhuma piedade. É terra-coisa. A noite seca com milhares e milhares de trilhões de grãos de areia. De noite? Como é gélido esse lençol de ar que crispa trêmulo de frio intensíssimo de uma intensidade quase insuportável. A cor do deserto é uma não-cor” (p.111).

 

    Há pessoas excepcionais que escrevem, mas não é necessário ser um gênio para escrever. A escrita é silêncio, corpo e pensamento que se faz ato. Consegue produzir uma trilha ou um rastro que seja. A narrativa, no caso do melancólico, desvela essas tênues marcas que podem capturar o sujeito nesse lugar de solidão e estranheza e pescar aquilo do real que pode ser nomeado. A escrita, que estamos aqui nomeando de escrita melancólica, nos fala assim,  mais do pulsar da letra do que da abundância de sentido. Ela nos fala da escassez. A desertificação absoluta do sentido, que coincide com o ponto em que a linguagem se conecta com o real.

 

     “Para escrever eu antes me despojo das palavras. Prefiro as palavras pobres que restam” (1999, p.43).

 

     Dito de outra maneira, essas palavras pobres que restam podem nos falar do real de total ausência de sentido. E tocam de perto a quase finitude nem sempre perceptível ao sujeito e que a Sociedade do espetáculo (Debord, 1997) tenta encobrir com o incessante entretenimento. Acreditamos que o melancólico possa, em particular, nos dizer algo desse lugar de solidão e aridez.

 

     “Todos nós estamos sob pena de morte. Enquanto escrevo posso morrer. Um dia morrerei entre os fatos diversos” (p.28).

 

      “Mas sou estrela. Sinto que sou estrela. Espatifada. Sou caco de vidro no chão”. (1998, p.44).

 

      No Seminário 23 (Lacan, 1975) que citamos nesse texto, Lacan se debruça diante da escrita de Joyce que conheceu quando tinha 19 anos em Paris e cuja escrita sempre o impressionou. Para ele, Joyce era um artista, um artífice, um homem com savoir-faire. Usa a expressão hairesis ou seja,  heresia,  para designar seu trabalho. No sentido grego, heresia seria a invenção de uma nova via, prática de héros − o herói. Foi essa a idéia que norteou o seminário e o texto que apresentamos: e se, em nosso trabalho clínico, pudermos com a arte, em particular a arte da escrita, abrir novas possibilidades criativas e de reinvenção do sujeito ao final de uma análise?

 

 

REFERÊNCIAS

 

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

EDLER, S. Luto e melancolia; À sombra do espetáculo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008

FREUD, S.(1915[1917]) Luto e melancolia. S. Paulo: Cosac Naify, 2011 (trad. Marilene Carone)

_________.(1930[1929]) Mal estar na civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora 1974

GOTLIB, N. Clarice, uma vida que se conta. S. Paulo: Editora Ática, 1995           

KEHL, MR. Melancolia e criação. IN: Luto e melancolia (tradução de Marilene Carone). S. Paulo: Cosac Naify, 2011.

LACAN, J. O Seminário 7 A ética da psicanálise.(1959/1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008

LAMBOTTE, MC. O discurso melancólico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997

LISPECTOR, C. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2009

_____________. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998

_____________. Um sopro de vida. Rio de Janeiro. Editora Rocco, 1999

SOLER, C. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 1998

 

Vida, vida recoberta com um véu de melancolia. Morte: farol que me guia em rumo certo. Sinto-me magnífico e solitário entre a vida e a morte. (Lispector, 1999 p.156).

Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. (Lispector, 1999, p.17).

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